Palavras dribladas

O campo dondé que nós jugamos foot-bal, foi merolharado muito em 1957. Assim, nós já póssamos particar a modalidade sem que tênhamos medo de se lisiunar num piso com buracos. Até os balniários já têm xuveiros! Obrigado direcção!




E é com esta pérola, ao estilo toponómico, que o campo do Outurela nos brinda logo à entrada, para que não nos esqueçamos da obras feitas pela direcção em 7 de Julho de 1957. Parece que o campo melhorou mesmo! Viva o futebol linguístico e as suas fintas na sintaxe! Eu por mim vou continuar a participar no torneio todas as semanas e a entrar em campo sempre a rir. Se calhar até é esse o objectivo... desporto divertido!


P.s. - Desculpem a foto, mas o meu telemóvel e os tremores que ainda tinha depois de levar mais um 6-1 na pá, não deram para mais!

Café da partilha

As vicissitudes da vida fazem-me entrar de quando em vez num café da Alta. Da alta chunga, diga-se. O caricato do ambiente traduz-se nos pormenores frequentadores e envolventes. A começar pelo nome, Rosa Latina. A Rosa (que por acaso é Sandra) deve ter ido buscar a ideia ao facto de parecer um verdadeiro macho latino, o que em versão feminina deve dar Rosa.

Não contente com a sua feminilidade máscula, a Rosa, aliás Sandra, insiste em partilhar connosco uma pastilha elástica que a cada mastigadela nos brinda com a aparição da sua língua a envolver avidamente e freneticamente aquela pastilha, qual peça de roupa no tambor da máquina. Voltas e mais voltas e em cada uma, a aparição linguística num constante vai e vem. Da equipa, faz parte a Lena de leste que absorveu em pleno o ambiente chunguítico que a rodeia (o pessoal de leste tem esta capacidade de se adaptar facilmente a tudo) e que também já treina partilha de pastilhas com os clientes.



Das 6 vezes que lá entrei, de manhã, vi sempre as mesmas pessoas, o que me faz pensar que são frequentadores habituais. Uma família de ciganos, cujos 3 rebentos comem logo pela manhã, em efusivo barulho, bolos com chocolate e Coca-Cola, enquanto o patriarca mama a sua bojeca e a sandocha de presunto, misturando mastigadelas de boca aberta com algumas chapadas nos putos. A loura platinada de 60 anos, que é muda, mas emite alguns grunhidos comunicativos e que insiste, mesmo assim, em falar com todas as pessoas que entram. E finalmente, a piéce de résistance, a senhora com 2 por 2 (metros!) que ocupa de facto duas cadeirinhas quando se senta ao balcão, uma para cada bochecha presumo, e que ostenta o seu esbelto cabelo oleoso e a sua luzidia caspa, tipo neve, nos seus ombrinhos, que medem (cada um!) mais coisa menos coisa a largura das minhas costas, e que pede delicadamente em volumosos decibéis:

- Oh Sandra! Quero uma torrada cheia de manteiga e uma meia de leite! Ó des pois tiras um café!

Ao que a Sandra, Rosa, aquiesce subservientemente (não vejo acontecer isso com mais ninguém) enquanto espirra furiosamente para cima dos bolos. Monco puxado, braço passado transversalmente para limpar o pingo que já aparecia e de volta à mastigação partilhada, remata:

- Que alergia que tenho logo hoje que faço anos!

Perante tal espectáculo, e com o inevitável e incontrolável esbugalhar dos meus olhos, refugio a minha estupefacção na sandes de queijo e no fundo do meu galão, enquanto a Rosa, Sandra, aproveita para cravar, no verdadeiro sentido da palavra porque ela insistia que tinha que ser uma oferta, ao Sr. Hélder (o fornecedor das bebidas que chegara no entretanto) duas garrafinhas de champanhe pela efeméride comemorativa do dia, e vou pensando que até é divertida a vida do meu bairro com todas estas partilhas!



P.s. - E hoje de manhã ainda vi o meu "amigo" GNR, no sítio do costume. Até disse adeus, mas esqueci-me que ia de mota...

Viajar todos os dias

Sinto na fronte do desejo, uma vontade de aprender futuros diferentes. Persigo a ânsia da novidade e temo a fobia dos círculos diários. A procura do lado de lá, inspira-me o ânimo de acordar na esperança de lá chegar.

As passadas iguais com um pé em frente do outro, com a cabeça entre as orelhas, acima da terra e debaixo do céu, uns dias melhores que outros, mais velho que ontem... não me chegam. Preciso de passos novos! A dança da vida, tem que se revestir de muitos estilos efectivamente afectivos.

A mediocridade dos prazeres alcançados, e já esquecidos, não serve a minha carta de intenções. Escrevo nas linhas do desejo a vontade da mudança constante e da perseguição de novos alcançares. Percorro a estrada do tempo no sentido inverso da realidade, sorrindo nas curvas fora de mão.

Tenho a subir pelas pernas, o terror de um dia receber o relógio de ouro pelos 40 anos de trabalho na firma! Sinto a descer pela ideia, a esperança de receber um relógio de plástico de 3 em 3 anos! As badaladas do meu relógio de intenções, marcam um ritmo anti-metronemo em busca da diferença do amanhã. Não procuro a super especialização única, mas as pequenas especializações universais. Ou então… prefiro viajar!



Era bem dada!

Não é pela originalidade do tema, mas pelo choque da situação. Não é pela subjectividade das opiniões, mas pela objectividade do choque, que não consegui ficar indiferente e tive que deixar a minha lavra...

Não digo que seja preciso continuar a levar uma maçã e a entrar em fila de olhos no chão, mas isto também é demais!



Do alto de toda a irreverência que sempre achei que tinha, ainda fico chocado com o desplante e a falta de respeito. Sinto que o mundo pula e avança enquanto a educação caminha no sentido inverso. Os avanços tecnológicos e o facilitismo latente não caminham lado a lado com as boas maneiras. As pessoas cada vez menos se respeitam umas às outras e, principalmente, não respeitam os mais velhos. A noção de que a idade é um posto, perdeu-se completamente. É verdade que já na minha geração as coisas eram de certeza diferentes da geração dos meus pais, mas há limites para tudo! Eu que até sou contra as coisas demasiadamente hierarquizadas, sobretudo em termos laborais, não consigo perceber que a imagem de um professor não seja envolta numa auréola de respeito mínimo.

Para as gerações mais novas, a idade do interlocutor não tem qualquer significado e parece não haver diferenças na maneira como se interpelam pessoas de diferentes idades… não confundir com graus de educação ou classes sociais. Estou pura e simplesmente a referir-me à idade. Eu, Doutorado em Física Quântica do Bacalhau, tenho a obrigação de ter um trato respeitoso perante o Zé Manel da esquina que varre a rua todos os dias, pelo simples facto de ele ter idade para ser meu avô!

Pese embora o facto de haver mil e uma maneiras de abordar um problema e de a subjectividade reinar em muitas questões relativas ao estado da nação educativa, e de a aluna ter feito mal porque, e a professora também ter estado mal porque… a mim o que me preocupa mais, é mesmo a questão de fundo que está por trás e que me faz pensar que se está a perder cada vez mais a noção de respeito e a boa educação, não a cultural, mas a da maneira de estar e de viver.

Não me sinto identificado com os métodos do antigamente e defendo a mudança nos sistemas de ensino, mas que uma chapada bem puxada atrás era bem dada, lá isso era!

Da vida fiz criança




Nasci do ventre criado
De um acto pouco pensado
Da certeza fui abandonado
Da convicção fui esquecido
Da memória fui apagado
Mas, sei que o amâgo atingido
Foi o do fruto descascado

Andei no rasto da vida
Tracei a rota cumprida
Marquei passagem sentida
Fiz da alma uma mensagem
Escolhi facilidade contida
Acertei a minha viagem
Comprei o Bilhete de Ida

Na paisagem pus esperança
Da vida fiz criança…

Cheguei à praia da certeza
Ondulei alguma tristeza
Rebati na areia vivida
Castelos de sonho desfeito
Corri na maré sentida
Pisei amor e respeito

Calculei ventos e mares
Aventei sonhos aos ares
Acertei agulhas de rumo
Risquei traços de afecto
Vesti fatos de aprumo
Despi roupas de beto

Na paisagem pus esperança
Da vida fiz criança…

Sairei na estação sabida
Morrerei longe da vida
Deixarei a cada ouvinte
A sintonia seguinte
Mais a pauta pedinte
Com a música ouvida

Na paisagem pus esperança
Da vida fiz criança…


Deu-me pra isto!

Agora ando assim. Não consigo ficar indiferente a algumas vivências e tenho cruzado na minha distracção histórias que deixam marcas profundas no entendimento que faço, ou fazia, da vida.

Quase sinto vergonha em sofrer os meus “pequeninos” problemas, quando na verdade não sei o que é sofrer verdadeiramente. Bem posso agradecer tudo o que vivi, se me comparar, e é quase criminoso comparar, com outras vidas, com outras experiências de existir.

É com este pensamento intrínseco que tenho saído de algumas salas de cinema e fico a remoer as histórias no íntimo das minhas contemplações. O paralelismo entre a genialidade e a loucura, entre a fama e a miséria, entre o muito bom e o muito mau, entre o alto e o baixo… Cada vez mais sinto que quando recebemos uma alegria de uma mão, temos a acompanhar uma tristeza na outra.

Passado isto e mais os factos, tenho que confessar a profunda admiração e surpresa que se transformou em mim quando deparei com a história de vida de uma diva que sempre me foi indiferente. Cresci a ouvir as suas músicas, mas bem no fundo do poço da minha consideração, por achar que me soava a “foleiro” e a “lamechice”. Nunca puxei o balde da minha atenção até ao cimo porque não compreendia a tonalidade melodramática de toda a sua figura.

Até ao dia, o de ontem, em que aproveitando a fase cinéfila que atravesso fui ver a história da sua vida. Não posso fugir à verdade do meu cepticismo antes de me sentar naquela cadeira e tenho que dar a mão à palmatória em como não ia muito convencido. Mas ao longo da película, e à medida que o meu queixo caía de admiração, fiquei rendido a uma vivência impressionante a que não acredito ser possível ficar indiferente.

Cada vez mais concluo que somos um produto de passados cruzados numa amálgama do presente e que cada passo dado é o resultado de muitas caminhadas. Rendo a minha homenagem a uma vida curta, mas vivida em pleno no fio da navalha! Que choque de realidade vivida se sente nesta história.







E já agora... que interpretação plena de mérito e sentimento. Não tenho a certeza da justiça de todos os óscares, mas este posso garantir que foi verdadeiramente bem atribuído!



Alfândecracia

Na era do programa Simplex, onde a burocracia é o inimigo a abater, deparamo-nos com a intransigência funcional de quem nem sequer pensa e apenas executa. O burocrata comporta-se como um indivíduo ritualista, apegado a regras, e voltado para a concretização de objectivos (Merton*).

Na burocracia os assuntos são resolvidos por um conjunto de funcionários sujeitos a uma hierarquia e regulamento rígidos, desempenhando tarefas administrativas e organizativas caracterizadas por extrema racionalização e impessoalidade, desnecessárias ao funcionamento do sistema. Não me admira, por isso, que o termo latino burrus, esteja na origem desta palavra!

Na exasperação constante de quem tem que desalfandegar frequentemente encomendas oriundas dos States (é certo que não pertencem à União Europeia, mas se vier do Japão é mais fácil), deparo-me com a combinação brilhante entre a burocracia e as nossas alfândegas… o conhecido movimento denominado por Alfândecracia!

Este movimento muito característico no Norte do país (não consigo perceber porque é que estando eu em Lisboa, é sempre à alfândega do Porto que as coisas vão parar!), tem vindo por aí abaixo até ao dia-a-dia da minha sina. Alvo de telefonemas constantes, recorro a toda a minha sapiência em artes burocráticas e esgrimo o melhor que posso a defesa das mercadorias até à estocada final!




Depois de 555 telefonemas, 50 faxes a explicar detalhadamente o que não é mais detalhável; 10 juramentos solenes em como não é uma transacção comercial; 20 teorias da conspiração esmiuçadas e reveladas;, 300 identificações pessoais (já lá devem ter quase todos os meus números… acho que só falta o do videoclube) e muitas cabeçadas de desespero minhas, recebo as famigeradas encomendas que demoram 3 dias a chegar ao Porto (dos States, relembro!) e duas semanas a chegar a Lisboa!

Ele há distâncias, sobretudo as burrocráticas, difíceis de ultrapassar!


* Robert King Merton – Sociólogo americano (ainda bem que nunca veio dentro de um pacote para Portugal, porque se não nunca mais cá chegava) teorizador e combatente da burocracia. Morreu no ano de 2003, no dia em que eu celebrava o facto de ter nascido. Tinha que haver uma ligação entre nós!

Money talks, Bullshit walks!

Quem pode manda, quem manda não sabe, quem sabe não pode! Quem pode sabe que quem não manda sabe que sabe e sabe que não pode! Mas saberá quem pode, que na verdade pode não saber?!

Vivemos uma luta desigual de interesses e vontades, dividida entre o saber e a razão. A força do dinheiro comanda a racionalidade do poder, através da manipulação dos meios. Exercer poder hierárquico empoleirado, tem na sua grande maioria uma sublocação financeira. Sim porque eu mando, ou sim porque isto e também porque aquilo?

No fundo das razões jaz a indiferença da liderança exacerbada. A espada do conhecimento fundamentado, resvala na couraça financeira da chefia pseudo-poderosa. A megalomania das patentes, esmaga a sobrevivência das massas pensantes!

A incongruência bárbara do poderio financeiro, comanda os relacionamentos. Nem a conversa, fiada ou não, paga a dívida da descrença ignorante do poder. Pago posso! Posso mando! Mando pago! Pago posso…




Procuro no fundo da luta o bálsamo da motivação, que dilui a raiva da minha incompreensão no mar da minha discordância de poder. Não posso, não quero, nunca fui… espero nunca ser!

Acudam-me os amigos se cair nas trevas da desilusão, se cair nas malhas do poder esmagador, se cair no mar da indiferença reinante… não me deixem afogar na vergonha de mandar sem saber, só porque posso!

Quero ficar à tona da razão, a boiar no respeito da conquista e do saber alcançado...

Levantamo-nos todos os dias, porquê?!

Na linha da existência, seguimos um trajecto do nascer ao morrer, que nos leva por todas as estações e apeadeiros neste comboio que é estar vivo. Seguimos um percurso de objectivos intemporais que nos aproximam do fim da linha. Na chegada, a essência de todas as paragens e a certeza de que o existir teve significado.


Será que a mola de motivação que nos impulsiona todos os dias para o mundo, vai diminuindo a intensidade com o passar dos anos? O arrastar pesaroso do objectivo a cumprir acompanha o murchar da flor da vida, que dobra, decresce, encolhe e por vezes… desaparece?!

A dificuldade em aceitar que a vida é uma sinusóide e, sobretudo, que as fases descendentes são uma evidência do caminhar, impele a razão contra a vontade num retrato muito bem tirado numa doçura de filme caramelizado no meu pensamento. A ligeireza despretensiosa desta narrativa, tão objectiva no seu discurso de normalidades sentidas e vividas, realça uma perspectiva feminina de uma sociedade marcada pela indiferença dessa condição e do garantido inconformismo do envelhecer.

Passada a cinematografia da imaginação, surge num e-mail a curiosa teoria da Vida ao Contrário! Como seria se a direcção fosse no sentido oposto, se o fim trocasse de lugar com o princípio e se do fruto se chegasse à semente…


Vida ao contrário

Começar morto e livrar logo disso.
Depois acordar num lar para a terceira idade, sentindo melhorias a cada dia que passa.
A seguir, ser expulso por estar demasiadamente saudável.
Gozar a reforma e receber a pensão de velhice.
Gastar até começar a trabalhar. Receber um relógio de ouro como presente logo no primeiro dia.
Trabalhar 40 anos, até ser demasiadamente novo para o fazer.
Ir para o liceu e beber álcool. Ir a festas e ser promíscuo.
Depois, passar para a escola primária, brincar e não ter responsabilidades.
Transformar então num bebé e passar os últimos 9 meses a flutuar pacifica e luxuosamente, em condições equivalentes a um spa, com ar condicionado e serviço de quartos entregue por cabo. E finalmente...
Acabar a existência num grande orgasmo!!


A crescente mobilidade de vontades e inconformismos manifesta-se no nosso interior com a sensação de que urge mudar o rumo. Reprogramar um rumo traçado vários anos antes, implica uma onda de mudança nem sempre fácil de apanhar ou de sentir. Se a vontade se torna num iceberg, a onda passa e nem damos por isso. O crescimento da nossa vivência acompanha o envelhecer físico, mas não tem que ser seguido pelo envelhecer mental. A idade do nosso espírito pode ser decidida por nós para que as curvas descendentes tenham traços de ascensão. Sentir que afinal faz sentido levantar todos os dias e simplesmente não nos deixarmos adormecer no leito do nosso desânimo.

Felizes os que encontraram a ode da sua poesia interna e cantam em alta voz a vontade de viver. Saborear a tranquilidade da certeza, alimenta o ritmo diário da passagem. A pincelada lânguida na tela do acordar, deve passar a traços firmes no desenhar convicto de um levantar com vontade!

Jardim da Memória

Não sei com que idade começam as recordações nostálgicas, mas eu já vou tendo as minhas. Fruto do que somos e do onde vamos, transportamos na nossa bagagem existencial uma colecção de memórias. Memórias sentidas e recolhidas no trajecto que nos fez nascer e que nos conduz ao fim da viagem.

O avançar do mundo não nos deixa manter alguns hábitos que fazem parte da nossa colecção e não da nossa realidade diária, mas que nos acompanham sempre no pensamento. Vivemos os dias cada vez mais depressa e todos os gestos diários caminham num poupar de esforço e tempo.

Os CD`s e os MD`s, os MP3`s e tudo outra vez, os nanos e os gigas, os i-pods e os i-phones e, sobretudo, os i-meu-Deus_qué_isto?!, vieram reduzir o processo de elaborar consequências. Cada vez se faz menos para atingir o objectivo final, é tudo “touch and go”! Perdeu-se o prazer domingueiro de ouvir um disco em vinil com toda a calma, demorando 10 minutos entre a ideia de o ouvir e a concretização da mesma (ideia). O ritual que começava pelo aplicar de uma pequena quantidade de spray anti-estático, a passagem daquela almofadinha de veludo sempre em movimentos circulares para tirar o pó todo, a limpeza da agulha do gira-discos, o colocar do disco no prato, o acertar da agulha naquela margenzinha de início e ouvir os estalidos antes da música começar, o sentar com prazer e depois… o desfrutar de alegrias como esta:



Este maravilhoso disco de 1978 faz parte do meu imaginário infantil! Aqui está o arquivo presente desta minha memória coleccionada que quero partilhada para que não se sinta perdida. Uma realidade infantil de grande qualidade musical, com a simplicidade eficaz de quem não i-nada! Era um disco em vinil e pronto! Era moroso e dava trabalho ouvi-lo e a preguiça dos nossos dias nem era um factor nesta equação de vontade. Ganham-se umas coisas, perdem-se outras… enfim, nostalgias!

Que saudades... de ouvir o guarda Ezequiel, o elefante D. Henrique, a serpente Serafina, o jacaré Casca Grossa, o hipopótamo Aristocrata, o burro Adalberto, o sapo Baltazar, a rã Henriqueta e o Popas, o papagaio! As horas de prazer e satisfação que me transmitiram permanecem intactas no meu baú de recordações. Ainda hoje canto estas músicas, como se as estivesse a ouvir nos meus Domingos de prazer!


Muito obrigado ao Carlos Mendes, ao Joaquim Pessoa e ao Júlio Isidro pela autoria, à Maria José Guerra pela narração e ao Pedro Osório pela direcção musical. Vocês fizeram de mim um herói destas histórias, nunca me cansei de passar os portões desse jardim!

Hoje pensei...

Estranho caminhar este, que nos leva onde não sabemos à procura do que não encontramos. Os passos dados pela razão ultrapassam a compreensão da vontade e transportam-nos para o lado de lá do que entendemos. Hoje pensei.

Caminhamos de mãos dadas com a lassidão, subindo em sintonia a encosta do dia-a-dia rumo ao pico da mudança. Do outro lado da montanha está um amanhecer diferente, um amanhecer de esperança e vontade de acreditar que o sonho existe. Hoje pensei.

Nascemos empurrados numa direcção imposta, sem que a vontade própria surja como elemento fundador. A nossa vontade cresce no caminho que trazemos, mas nem sempre atinge a superfície da efectividade e muitas vezes afoga-se no mar de uma praia constante. Hoje pensei.




Rose is a rose is a rose*. As coisas são o que são. Estranho caminhar este, que nem sempre nos faz contestar a dádiva da existência, mas que simplesmente nos faz seguir em frente apenas porque é preciso lá chegar. Já tinha pensado há mais tempo.

A inadaptação sistemática dos inconformados fez-me pensar que quero entender a minha viagem. Quero percorrer o caminho da minha direcção cônscio de que as coisas não são apenas o que são, mas que podem ser aquilo que nós quisermos que sejam!

E isso… Hoje pensei!



* Gertrude Stein; (3 de Fevereiro , 1874 – 27 de Julho, 1946) – Escritora americana catalisadora do desenvolvimento da arte moderna e da literatura, que passou grande parte da sua vida em França. Diz-se que ela fez com as palavras o que Picasso fez com as tintas.

A sorte no azar!

Na estranheza matinal de uma deslocação enlatada para o emprego, vejo, depois de uma curva, surgir repentinamente um ser vestido de escuro com uma grande proeminência amarela fluorescente ao centro, a acenar vigorosamente.

Ainda pensei ser alguém a avisar-me de um acidente ou de uma catástrofe, mas não… era um simpático militar da Guarda Nacional Republicana a mandar-me parar. Passada a primeira frustração por estarem naquela curva que curvo todos os dias, no único dia que vim de carro, ainda fiquei contente comigo mesmo por ter saído de casa mais cedo que o habitual.

Continência feita, com a unhaca do mindinho quase a tocar na pala (tal era a sua plenitude pontiaguda), surge uma voz rouca a silvar cuspiosamente (não é uma gralha, vem mesmo de cuspo! Talvez “derivado ao facto” de não existirem os principais dentes da frente de tal cremalheira da autoridade):

- Bom dia Shô Condutor, faculte-me os sheus documentos e os da viatura she fizer favor.

- Bom dia Sr. Guarda. Com certeza! Aqui está… carta… livrete e registo de propriedade… seguro…

Enquanto a autoridade inspeccionava do alto da sua magnificência superior, os meus documentos, decido-me por uma abordagem parvó-espertalhona a roçar levemente o humor sem piada, mas com pitadas de quem pensa que sabe muito:

- O Sr Guarda acha que o meu trabalho prejudica o seu?

- Não, porquê?

- Porque vendo bem, o seu prejudica o meu!

- Acha que shim?

- Acho, porque a mandar-me parar a esta hora da manhã, eu vou de certeza chegar tarde ao emprego. E se chegar e disser ao meu chefe que fui mandado parar pela polícia, acha que ele acredita?

- Isho já é problema sheu e do sheu patrão. Eu no lugar dele acreditava… entretanto faculte-me o comprovativo de imposto de shelo, she faz favor.

Primeiro sinal de alerta, primeira explosão do meu reconhecimento interior de que já estava a ficar entalado! No visor da minha consciência acende-se a luz dos €! O sorriso de Chico-esperto começava a fugir pró rabo! Decido-me pelo já tradicional remexer de todos os papéis e mais alguns, na esperança de encontrar o que sabia que não podia ser encontrado…

- O selo… o selo… ora bem, o selo… tenho aqui este papel…

- Pois é um como este, mas de 2008. Este é de 2006!

Mais um som de sirene de quartel de bombeiros na minha cabeça e a quase certeza de que já não me safava da talhada… remexo mais um pouco nos papéis, abro o porta-luvas, vejo nas portas… nada! Tou tramado! Que maneira de começar o dia!

- Mas sabe Sr Guarda, eu paguei pela internet juntamente com o selo da mota e…

- O shô condutor não viu na televishão que agora os shelos she pagam no mês de compra do veículo?

- Por acaso não vi, mudei há pouco tempo e ainda estou assim meio desarrumado…

- E já agora faculte-me também o papel da inspecção…

BANG!! Desta é que parecia que ia rebentar por dentro… a inspecção?! Mas que m**da! Não mexo no carro há tanto tempo que não me lembro de nada destas coisas! Em pânico, decido continuar a apostar na pseudo-perplexidão de quem é apanhado de calças na mão… gaguejo mais um bocado… remexo mais nos papéis e… desisto! Perante as evidências, baixo as minhas defesas e confesso o meu crime à autoridade…

- Pois não tenho… tenho o carro parado há muito e não me lembrei… que azar logo hoje peguei no carro e… bem, o que posso fazer então?!

Ajoelhei-me na consciência e esperei a machadada final. Imaginei a minha cabeça a cair no cesto da razão evidente da autoridade e comecei a fazer contas à vida… Mais uma vez o militar da GNR se engrandece (eu já olhava para ele como se estivesse no primeiro andar e eu cá em baixo), recorre a toda a sua sapiência de pedagogia rodoviária e remata:

- Shô condutor, pode pagar agora o shelo de livre vontade mais uma multa de 30€ ou então she não puder, ou não quisher pagar, apreendo os sheus documentos e prochede ao pagamento mais tarde…

- Eu pago sim, mas quanto é?

- 50€ do shelo, mais 30€ da multa.. quanto à inspecção vou fingir que nem vi e não diz a ninguém que asshim foi… pois a multa respectiva shão 250€!

Perplexamente aquiesço perante tal benevolência da autoridade e penso humildemente que afinal aquele ser tão prosaicamente português acabara de ser bem simpático perante as evidências. Naquele momento decido que não voltava a pensar mal de todos os polícias e enquanto caminhava de volta ao carro, depois de deixar a parte detrás do veículo da GNR onde os dois agentes tocavam barrigas enquanto preenchiam autos, pensei… bem, afinal, podia ter sido pior!




O meu obrigado ao simpático e bem disposto cabo da GNR que esta manhã me mandou parar, ouviu as minhas parvoíces e ainda esperou que eu fosse levantar dinheiro para pagar uma pequena parte de uma ainda maior infracção. Ele há dias de azar com sorte!

O Lado Selvagem

O inconformismo latente das nossas vidas, manifesta-se com vontade de mudança, com desejo de atingir o objectivo supremo de um patamar elevado de conhecimento de nós próprios. Este sentimento é comum a todos os seres humanos. No entanto, o que nos diferencia uns dos outros, a fronteira que separa a vontade da realização... é a coragem! Uns têm, outros não. Uns perseguem os seus sonhos, os seus ideais, outros não!

As mentes brilhantes têm histórias brilhantes, embora possam ser desequilibradas. E porque o melhor de uma história é a relação da realidade com a ficção e o impacto que nos causa, aqui fica uma história que me marcou profundamente por tudo o que me fez sentir, por tudo o que me fez pensar e por todo o inconformismo em geral.

Partilho-a em 3 formatos diferentes completamente distintos, mas complementares na paixão, na beleza e nas sensações que transmitem. Aqui fica a minha sentida homenagem...


1 - O filme que despoletou em mim toda esta reflexão e incapacidade de ficar indiferente. A matéria-prima era muito boa, mas não posso deixar de referir a maestria de Sean Penn na condução da interpretação desta vida que foi curta, mas marcante.







2 - O livro que dá origem ao filme. Não deixa de ser uma versão da história porque reflecte, também, a opinião e as sensações do seu autor (Jon Krakuer). É difícil relatar factos destes sem nos deixarmos levar pelos nosso próprios pensamentos...





3 - A música. A excelente Banda Sonora Original (OST - Original Sound Track) do Eddie Vedder. Envolve cada página do livro e cada imagem do filme numa nuvem de reflexão sentida. Uma OST que foi escrita e pensada para este filme, daí ter uma carga emocional e uma adequação perfeitas!




Se a marca ficar como em mim ficou, vale a pena ver este sítio:

http://www.intothewild.com/


Sem qualquer juízo de valor, sem qualquer concordância ou discordância por tudo o que viveu, sem escalpelar as motivações, mas apenas impressionado por uma vivência tão inconformada... um obrigado sincero a Christopher Johnson McCandless pela marca que deixou no meu inconformismo!

Foi bom ver este fime, é bom ler este livro é muito bom ouvir esta música vezes sem conta!

Dia de Aniversário

Hoje e ontem e sobretudo anteontem é e foram dias de aniversário! De um aniversário que se quis teu, para que fosse nosso de comemorar. Para que fosse o primeiro dos que estão para vir. Para que fosse celebrado pela presença das nossas vontades, pela alegria dos nossos nascimentos. Nascemos os dois no dia em que nos conhecemos, no dia em que comemorámos a dádiva da coincidência que nos fez existir ali e naquele momento! Todos os dias são dias do nosso aniversário. Cada dia que passa, acrescenta ao nosso nascimento uma celebração de vontades, uma vontade de celebrar mais um aniversário.

Para não deixar passar o teu e o nosso aniversário, fica uma lembrança de um momento que nos marcou pelo arrepio da surpresa, pela simplicidade da inspiração e pela beleza da mensagem…


Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos
(15/10/1929)