M18 – Contos Lúbricos XI (aquecimentos profissionais)

Era uma garagem. Uma garagem suja e cheia de óleo, como é normal numa garagem. Sem contexto nem pudor, ela desaperta o fato-macaco dele enquanto se ajoelha. Uma enorme erecção profissional salta cá para fora enquanto uma mão de grandes unhas vermelhas, não menos profissionais, se agarra ao que estava à vista, deixando transparecer um olhar de pornografia barata. Segundos depois tudo se engolia.

Compassadas viagens de cabeça para a frente e para trás, faziam desaparecer toda aquela excitação nuns lábios de vermelho batido. Líquidos vários pingavam para o chão. Já o traje de mecânico jazia quando ela se levanta ao som da banda sonora, esfregando na subida uns voluptuosos, e vários números acima, seios de silicone.

Uma abertura de pernas treinada, mostra todo o esplendor de uma aparada vontade de receber língua gasta por estas andanças. Exaustivos minutos, lamberam toda a passagem de tempo previsto. Trocavam-se gemidos de forma mecânica e em sentimento imposto.



Dobrada sobre a bancada, pedia por sugestão que se fundissem num só. Desejo concretizado e a mesma erecção desaparecia em fundos de carne experiente. Para a frente e para trás ao ritmo escrito, para a frente e para trás ao ritmo estudado vezes sem conta.

Novos óleos surgem na garagem e muda-se a penetração. Agora mais em cima porque o sucesso é garantido. Mais fundo, mais forte, mais depressa, pede ela. Ele corresponde. Os corpos em plenitude pornográfica suam debaixo do foco de luz. Ela grita de eventual prazer em linguagem universal.

Deitados no chão lambem-se de forma ávida e invertida. Ritmos treinados de língua apressam trocas de prazer. Chupados momentos depois, ela senta o seu interior profissional cavalgando os minutos seguintes em desenfreados gritos carnais. A imagem vista de cima, revela uns seios em descomunal saltitar. É chegada a hora.

Levantam-se rapidamente enquanto ela abocanha os segundos finais, o gemido treinado dele é o sinal. Tem que se ver. O auge espalha-se pela cara dela e pela garagem. Os dois olham para nós a sorrir.

- Corta!

Dezenas de pessoas à volta começam a andar de um lado para o outro. Baixam-se braços cansados e apagam-se luzes intensas. Ele e ela limpam os restos com indiferença.

- Muito bem pessoal… amanhã filmamos a cena da banheira.




P.S.: Nem tudo o que é profissional é bom...

FRASEANDO #11

O Fócrates está sodido!

Autor Desconhe(u)cido



P.S.: Outra estreia!

CLUBE DE LEITURA – A votação que se segue

E na quarta volta todos iam à frente. Todos queriam ganhar, mas o lugar mais alto do pódio é sempre solitário. No entanto, muito nos regozijou o olhar ao ver tantos concorrentes (pela primeira vez) na linha de partida.

E é pela minha alegria, e pelo meu agradecimento, que faço alinhar todos os concorrentes na votação deste quarto livro. Têm muito por onde ler. Escolham, pensem, apostem, votem. Invistam no vosso preferido.

Aqui vão, alinhados por ordem de chegada, sem preferências:


1 – No Dia em que Fugimos Tu Não Estavas em Casa – FERNANDO ALVIM



2 – Letra e Música – PAULO CASTILHO



3 – Uma Casa na Escuridão – JOSÉ LUÍS PEIXOTO



4 – O Último Cabalista de Lisboa – RICHARD ZIMLER



5 – A Montanha da Alma – GAO XINGJIAN



6 – O Jogo do Anjo – CARLOS RUIZ ZÁFON



Vão ser 10 dias de luta intensa pela vitória. Podem votar em mais que um. Que ganhe o que ganhar! Relembro que O Solista continua em análise, e os outros todos para trás também. Boas leituras.

Adaptações


Parece-me uma troca justa. Obama fica com um cão português e os portugueses adoptam o seu lema de campanha. No entanto, se o cão tem que se adaptar às vicissitudes da vida americana, o lema tem que fazer o mesmo em relação à vida portuguesa. Em Portugal, sê português! Por isso, todos comigo:





P.S. – Pensamento recebido por e-mail. Thanks V.

FRASEANDO #10

Quando nos põem numa vida, não sabemos ser outra.



Dulce Maria Cardoso
In Os Meus Sentimentos


P.S. - Primeira mulher a frasear por aqui. A primeira de muitas, claro...

Mundos paralelos

Entre o meu mundo e o desta senhora, o saldo é positivo em 6 unidades. São estes balanços que dão equilíbrio ao inegável facto de que o mundo pula e avança como bola colorida, entre as mãos de uma criança (neste caso de 8).

No meu mundo era previsto ter menos um, era imprevisto ter menos dois. No desta senhora era previsto ter mais sete (do A ao G), mas eis senão quando surge um imprevisto H a espreitar e a reclamar o seu direito de nascença.




Se no meu mundo se voltam a pintar os cinzentos, no desta senhora a cor é tanta que ela não cabe em si (aliás a questão é como é que eles couberam nela) de contente. No entanto, vai ter que acinzentar algumas das cores que o futuro lhe pinta.

Quando eu nasci para o meu mundo havia um médico para me pôr cá fora. No desta senhora estiveram 46 médicos para 8 bebés, o que dá um rácio de 5 médicos mais 75% de um sexto por cada bebé. A cesariana demorou 5 minutos. Penso que foi pelas 92 mãos que havia para tirar bebés cá para fora.

No mundo da gravidez que me originou, estavam 3 quilos e tal de mim dentro de uma barriga. No mundo da gravidez desta senhora, estavam qualquer coisa como 10 quilos de seres dentro da barriga dela. Será que se mexia?

Neste meu mundo egoísta há espaço para escrever parvoíces. No desta senhora não deve haver tempo nem sequer para pensar. E parece que vai dar de mamar a todos...

The Sound of Words - XI

(conversa entre duas vacas… nos Açores)

- Qué ca quel boi tá fazende?
- Tá corrende desenfreade…
- Ai mê Deus que tá atacande as vacas tôdas!






P.S. – Era para escolher Dimeticona, mas fiquei sem saber o que dizer…


Retemperado (7ª arte, Obituário, Frases e Clube de Leitura)

Passados os momentos passados, descansaram os neurónios da indignação, da dor e da partilha. A, B e C respectivamente. De regresso a lides de escrita, usam-se as bandarilhas do destino para alinhar faenas de esperança e apontam-se os próximos toureios ao futuro que vier.

Em tom de regresso, deixo um apanhado do que fui apanhando nestes dias…


O estranho caso de Benjamin Button

Qualquer cinéfilo amador (que ama) tem que ver este filme, porque tem que ver este filme. Não sei quantos Óscares vale, mas para mim valeu todos os minutos que durou. Fez-me rir, emocionou-me, alegrou-me, fez-me pensar… e isso, é o que eu mais quero dos filmes. O resto, deixo para os “especialistas”.






OBITUEMO-NOS #4

Os museus e a ciência devem-lhe toda uma fundação.


Fernando Bragança Gil
(1927-2009)

P.S. - Atrasado dois dias, mas com a mesma homenagem.



FRASEANDO #9

We’re meant to lose the people we love. How else would we know how important they are to us?


In
Benjamin Button


CLUBE DE LEITURA

Obrigado pelas sugestões, estão todas assentes, e até quinta-feira podem enviar mais. Nesse dia serão postas a votação. No entretanto, O Solista está em fase de comentário...


Retemperar

A redacção informa os seus estimados leitores, que os responsáveis pelas publicações diárias (neurónios A, B e C) se encontram temporariamente ensombrados pelo nojo das circunstâncias.

Uma pausa muito breve para recarregar as canetas da criatividade, seguida de um regresso ao normal universo da partilha escriativa.





Até lá, que tal aproveitar a pausa para sugerir uns livros para o Clube de Leitura?

Até já.

Conto Extemporâneo

Saltou pela janela e estranhou o chão tão mole. Cada passada deixava uma marca de passado impresso. Não sabia o que sabia até então, mas estranhava o ambiente de nevoeiro. Sentia que acordava de um sono tão profundo que nem se lembrava de o ter dormido. Não estava frio nem calor. Não estava nada.

A primeira pessoa que viu nem lhe dirigiu o olhar. Estranhou a indiferença da passagem, mas também é verdade que hoje em dia as pessoas nem ligam umas às outras. Enquanto pensava no caminho das relações humanas avistou mais uma pessoa. Desta vez dirigiu-se com mais convicção e arriscou um sonoro cumprimento:

- Bom dia!

Nem um vislumbre de movimento de olhar na sua direcção. Como pedras atiradas, as suas palavras afundaram rapidamente no lago da indiferença. Entrou numa rua cinzenta de comprimento que só tinha montras dos dois lados. Não se via para dentro delas, mas reflectiam-se umas às outras criando uma sensação de infinito. Quando passou na primeira não conseguiu ver o seu reflexo. Estendeu a mão para o vidro, até tocar, mas não tinha imagem de volta. No entanto, o vidro reproduzia a rua toda e o lado oposto. Estaria invisível? Não podia. Conseguia ver as suas mãos, os seus pés. Tocava-se e estava ali.

Continuou em frente na procura e percorreu todas aquelas montras que insistiam em ignorá-lo não lhe devolvendo o reflexo. A rua desembocava num largo de sensações desconhecidas que estava cheio de caras familiares que se deslocavam avidamente de um lado para o outro no topo de corpos desconcertados. Tentou falar com todos ao mesmo tempo, mas ninguém o ouvia. Atravessavam o seu corpo como se ele não estivesse lá, como se não existisse, como se estivesse preso entre mundos.

Aninhou-se num vão de escada escuro e bafiento. Um cobertor velho serviu para tapar todas as perguntas a que não conseguia responder. Adormeceu no cansaço e na dúvida eterna.




- E aquele ali?

- Aquele… deixa cá ver… aquele… aquele não devia estar aqui! Quem é que o chamou antes de tempo?!

- Isso não sei, chefe! Eu limitei-me a entregar a ficha dele na central.

- Mas como é que essa ficha veio cá parar 40 anos antes da data prevista? Alguém me explica?! Cambada de incompetentes! E agora?!

- Não sei chefe… talvez devolver o tempo dele a alguém da família…

- Seu estúpido! Seu incompetente! O desgraçado vai cumprir o tempo que falta naquele miserável vão de escada! E para que quer a família o tempo dele?!

- Sinceramente não sei chefe… nunca me tinha acontecido um engano destes… podemos pedir desculpa?

- Cale-se seu incompetente! Não diga mais nada…


CLUBE DE LEITURA – O Solista

Enlutados pensamentos percorrem a mente deste blog, mas se é bem verdade que nas adversidades se puxam das frases feitas, também é verdade que há que aplicá-las. E por isso, a vida continua, tudo continua. Os blogs continuam e os Clubes de Leitura também.

Agendado que estava o concerto de partilha, inicia aqui a troca de notas pessoais sobre a interpretação musical de cada um. Um livro original na temática, e na narrativa, que nos lança no compassado mundo da introspecção. Como a minha fluidez de escrita não está nos melhores dias, socorro-me da sinopse da badana para lançar o mote:

Quando o jornalista Steve Lopez vê o sem-abrigo Nathaniel Ayers a tocar de forma tão sentida o seu violino de duas cordas no Skid Row de Los Angeles, fica estupefacto. A princípio, é atraído pela oportunidade de fazer dele o tema de mais uma das suas colunas para o Los Angeles Times. Mas o que descobre sobre o misterioso músico das ruas deixa-o fascinado.

Trinta anos antes, Ayers tinha sido um promissor aluno de contrabaixo da Juilliard - um aluno ambicioso, encantador e um dos poucos afro-americanos - até que, gradualmente, foi vencido por um esgotamento mental. Quando Lopez o encontra, Ayers está sozinho, profundamente perturbado e desconfia de toda a gente, mas ainda é possível vislumbrar nele resquícios desse brilho.

Os dois homens aprendem a comunicar através da música. A sua amizade vai passar por momentos dolorosos, pois Lopez imagina-se capaz de convencer Ayers a abandonar as ruas de Los Angeles. Aos momentos de triunfo segue-se sempre uma desilusão, mas nenhum dos dois desiste. E, embora a intenção inicial de Lopez seja salva Ayers, acaba por constatar que a sua própria vida mudou profundamente.

O Solista, uma obra cativante, comovente e inspiradora, narra a história verdadeira de uma amizade, de uma devoção artística e do poder transformador da música.





Toquem, cantem, partilhem as vossas pautas de interpretação e os tons do vosso sentimento. Ultrapassem a barreira do pensamento e deixem sair as notas de opinião.

Entretanto, comecem a pensar em sugestões para o próximo livro. Quinta-feira (22 de Janeiro) lanço a votação com as contribuições que houver e/ou as minhas. Boas partilhas, e ainda bem que estamos vivos para poder continuar a ler!


FRASEANDO #8

Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada.

Fernando Pessoa




Fernando António Nogueira Pessoa

(1888-1935)

A NOTÍCIA

Dormia o meu sono egoísta e despreocupado quando tu chegaste. Irrompeste os céus da minha noite com a frieza do facto consumado e tomaste as rédeas do choque seguinte. Trazias contigo a morte e nem me deste tempo de te aceitar e de te dizer que não queria que chegasses.

Não eras um acto de jornalismo pensado, mas uma crueldade de um destino irreflectido e injusto. Ainda nem tínhamos fechado os olhos sobre a última morte e já me estavas a acordar de novo de uma forma imprevista. Deixa-me! Deixa-me dormir que não quero ouvir o que tens para dizer. Quero que a última noite se apague das nossas existências e que a maldita interrupção da tua chegada, nunca tenha existido.



Mas existiu... e agora temos que viver contigo. Dobrar roupas que ainda respiram, guardar sacos mórbidos de espanto, enviar cartas vivas por assinar, beijar olhos pejados de lágrimas, abraçar os mesmos de há 4 dias. Não estamos preparados! Que injustiça, que crueldade!

Porque vieste?!...

M18 – Contos Lúbricos X (abecedários quentes)

A e B estavam nervosos. Era a sua primeira festa e sentiam-se como dois adolescentes em descobertas lascivas. Estavam também excitados por isso. A toda a volta pares de pares, e alguns pares de trios, falavam e bebiam animadamente. Em comum todos tinham o mesmo olhar de desejo.

C e D aproximam-se, metem conversa, sentam-se. Alguns copos mais tarde todos riam e as carícias começam a cruzar-se. O ambiente aquecia de vontade. C e D apontam o desejo na direcção do primeiro andar. A e B seguem.

Portas passadas, portas fechadas. D ajoelha-se e sem mais perguntas abocanha A voluptuosamente, perante o olhar boquiaberto de umas calças inexplicavelmente já no chão. C desaparece por um vestido a dentro lambendo tudo na sua passagem. B reage à investida com uma admiração húmida. Surgem os primeiros gemidos de espanto.




Menos roupas mais tarde A é deitado de costas enquanto B se senta em penetração profunda e D senta o seu interior em língua de descoberta. B e D beijam-se e acariciam seios mútuos. C de fora dirige as operações.

Mudam-se os tempos, mudam-se as letras. B de gatas recebe investida estóica e fugazmente lasciva de A. No chão, mesmo por baixo deste encontro, D esfrega corpo em B. C de joelhos vai alternando erecção descomunal em boca de B e de D, em boca de D e de B, e assim alternada e abocanhadamente.

Entra o sofá na história. B e D de gatas lado a lado, oferecem os seus interiores rosa húmidos de vontade. A penetra D, C penetra B. Trocam. Penetram. Trocam. B e D dançam línguas em conjunto. Sorriem na partilha. Gritam orgasmos. Sorriem no cansaço.

Sem muito descanso, e de uma só volta, engolem, lambem e chupam dois desejos erectos de explosão. A e C soltam gemidos de prazer em bocas alternadas. Abocanham, alternam, abocanham, alternam. A e C rebentam em boca alheia. B e D olham com inundada luxúria. Todos riem.

De volta à festa A e B receiam olhares de outras letras, mas ninguém parece notar que estão mais experientes. Congratulam-se e despedem-se de C e D com votos de voltar na semana seguinte. E na seguinte. E na seguinte. Surgem E e F, G e H… até ao Z da vida.




Sete Vidas

A originalidade do argumento fica a pairar no nosso pensamento depois de as luzes se acenderem. Um filme para nos deixarmos levar sem querer contrariar, nem julgar nada. É só sentar e deixar ir. Triste, mas comovente.



A história toca sete vidas + uma, que é a de todos os que se deixarem envolver pelo espírito da partilha. Já é tempo de deixarmos de ter medo de sentir livremente, sem vergonha do que os outros pensam. Se for para chorar, chora-se, se for para rir, ri-se. Deixem-se tocar. Eu deixei…

http://www.sonypictures.com/movies/sevenpounds/site/


CLUBE DE LEITURA – Horizontes cruzados

Enquanto nos deliciamos com as iguarias escritas deste cozinhado a solo, a sugestora desta obra continua a actualizar-nos sobre tudo o que o acompanha. Aqui fica o condimento para uma outra degustação. Cruzam-se as artes…

http://www.soloistmovie.com/

Este site mantém o sabor de qualidade do livro e, para além do filme, é possível conhecer, e ler, as crónicas originais de Lopez no LA Times, conhecer, e ouvir, o verdadeiro Nathaniel e saborear toda esta realidade que envolve esta história. E boa música, claro.




As invasões napoleónicas e as linguónicas

No distrito de Bragança os miúdos andam todos à porrading. Não é novidade nas escolas, a diferença é que o chapading e o insulting agora são coisa de estrangeirismo. Já não se arrancam olhos, já não se chamam nomes, já não se cospe uns nos outros, já não se intimidam os mais fracos, já não se deixa ninguém de lado, já não se goza com esta ou aquela característica, agora… pratica-se o bullying!

O conceito define "comportamentos de natureza agressiva, entre pares, com a intenção de provocar dano", coisa que sempre houve em todas as escolas do país. A questão é que agora tivemos mais um atropeling na nossa língua e por isso o bullying veio para ficar. Não o conceiting, mas a palavring!

Não posso deixar de concordar com esta sátiring





P.S. – Não retira valor nenhum ao estudo, nem ao facto de os miúdos andarem cada vez mais violentos. Efeitos do Playstationing, do interneting, dos filmings, etcing??

The Sound of Words - X

- Tá tudo ponto?
- Tá quase, falta o pudim.
- E chega?
- É mexer bem e… ca ta, flan pa todos!



Conto antes póstumo

Estava encharcado até ao avesso da alma. Chovia copiosamente em todas as direcções do sentimento e começava a ter frio. O chapéu de chuva aparente, estava roto na determinação e deixava passar tudo. O sol tinha desligado ontem e os ossos do ânimo estavam agora realmente gelados. Estavam gelados de medo, gelados de frio, gelados de companhia.

A solidão dos acompanhados esconde a poesia interior em frases de banalidade diária: bom dia, até logo, boa noite, até amanhã… – O relógio da estação mostrava em monotonia de movimento que ainda faltavam 20 minutos para a partida do seu funeral. Tinha tempo. Sempre tivera.

Tentou secar algumas considerações para ver se aquecia a partida. Despiu o casaco molhado de mágoa e sentou-se na determinação da espera reflectindo entre pensamentos sobre a questão que o atormentava: será que alguém iria ter saudades suas?

O mesmo relógio, da mesma estação, na mesma monotonia, mas alguns movimentos mais à frente, mostrava que os 20 minutos tinham passado. Já não tinha tempo. Nunca tivera. O seu funeral estava a partir. Correu na determinação do alcance e com uma agilidade rara em si, saltou de uma só convicção deixando a plataforma boquiaberta enquanto entrava na primeira carruagem.




Sacudiu o casaco já seco de pensar e olhou em volta para algumas pessoas que o choravam. Familiares que nem sabia que tinha, dividiam lenços do mesmo papel enquanto fungavam entre dentes a perda do seu ente querido. Algumas recordações sobre o seu crescimento trouxeram sorrisos luminosos no meio de tanta lágrima cinzenta. Ali parecia estar a ser recordado com saudade.

Passou para a carruagem seguinte, onde os seus amigos de toda a vida confraternizavam entre copos e cantavam sobre as histórias da saudade. Acabou por rir também ao rever tantos episódios em que era protagonista e já nem se lembrava. Ali era decididamente recordado com alegria.

Na carruagem seguinte, além de confirmar que ninguém parecia dar por ele desde que saltara da plataforma, não reconheceu ninguém. Algumas frases depois, fez-se luz no seu espírito e percebeu o conteúdo: eram os seus leitores. Todos aqueles que o leram e gostaram e que não o conhecendo pessoalmente agradeciam todas as viagens que as suas palavras lhes proporcionara, todos os sonhos das suas frases, toda a imaginação da sua pontuação, toda a poesia das suas prosas. Ali era recordado com admiração.

Saltou para a última carruagem e não viu ninguém. Cheirava a destino e uma luz ténue de resignação apontava para o meio onde estava o seu caixão aberto e vazio. O interior acolhedor estava à sua espera ansiosamente e pedia em tom mavioso que se deitasse. Estava tudo preparado para a chegada à estação terminal. Esboçou movimentos vários no sentido da sua horizontalidade final, mas não conseguia concretizar. Num repentino assopro de revolta puxou a alavanca de emergência e tudo parou.

Saltou para a paisagem fresca de esperança e correu ao longo das carruagens no sentido da partida. Todos se amontoavam nas janelas para o ver passar. Uns pediam autógrafos, outros pediam canções, outros pediam atenção, mas todos sorriam e acenavam de emoção. Ainda não estava preparado para aquela viagem.

Voltou para o lugar de sempre, sentou-se e escreveu até à manhã do conto seguinte. O sol estava de novo ligado.



THE END (Fraseando #7)

São duas palavras facilmente associadas a lágrimas de 7ª arte, em canto de olho triste após um qualquer drama ou romance. São também associadas a ciclos que terminam, a portas que se fecham, a chamas que se apagam, a relações que se cortam, a objectivos que se alcançam, a tudo o que tem manhã, tarde e noite.

Hoje foi noite todo o dia...

... porque foi (re)semeado o fruto mais Avô do pomar, que não sendo meu podia ter sido, e que ocupava o topo de uma árvore de laços de fruta, originando o subir de um degrau genealógico na escada familiar. Deixou um legado de memórias e partilhas, escrito em tom de abraço de certeza e de continuação de caminho, expresso em testamento de vontade. A união dos outros frutos solidificou-se e exterminou bicho e ervas daninhas, numa sucessão natural de frutos pais e filhos, frutos tios e sobrinhos, frutos netos e bisnetos, frutos enteados, frutos primos e frutos convidados. A passarada de circunstância assistia na ânsia...


O pomar hoje ficou mais cinzento, é verdade, mas vai recuperar a cor amanhã quando os novos frutos subirem ao pódio da liderança e a passarada fugir para outras semeadas. O vazio criado pelo mistério da incompreensão e da agonia da repetição de rituais desgastantes, será preenchido pelo olhar em frente. O caminho a seguir está traçado e garantido.

Quando mais não resta se não pensar, move-se a caneta da partilha em escrita de embalar. Levantam-se as questões e cantam-se, dobram-se as memórias e guardam-se, enxugam-se as lágrimas e bebem-se, homenageiam-se as frases e escrevem-se:

Isto não é vida, mas a vida também é isto!

M.V.M
(1922-2009)




Guardarei na memória a sabedoria, no olhar o sorriso, no ouvido o conselho e no coração a certeza do respeito. Foi um prazer ter regado homenagem neste pomar!

THE END

1º ANIVERSÁRIO

Somos seres contadores. Assim que nascemos começamos a contar. Contamos o tempo, contamos o dinheiro (uns contam mais que outros), contamos os sucessos e os insucessos, contamos os amores e os desamores, contamos os dias e as noites, contamos o estudo e os amigos, contamos as experiências e as histórias, contamos fotos e recordações, contamos trabalho e férias, contamos a saúde e a doença, contamos o que falta para, contamos o que já passou de, contamos saudade, contamos sentimento e contamos, sobretudo, aos outros sobre o que já contámos.

Eu hoje já contei 366 dias, 267 Posts, 318 comentários, 5045 visitas, 1 programa de rádio, 1 clube de leitura, 5 doenças (com a de hoje), 40 etiquetas, 1 curso e meio de Escrita Criativa, 302 imagens e 1 orgulho por isto tudo.

O que eu não consigo contar são as horas de prazer que aqui estão, as palavras todas que aqui deixei, os contactos todos que por aqui fiz, a satisfação imensa pela descoberta deste mundo e a grande realização de criação de um projecto de partilha controlada.

O Bilhete de Ida é uma realidade em crescimento e faz parte integrante do meu blog de vida. Faz hoje um ano que tudo começou e este atingir de proporções que eu nunca imaginei, deixa-me fascinado por ter descoberto o prazer na escrita e pela escrita. Não estão em causa padrões de qualidade, mas sim de satisfação e eu hoje conto-me satisfeito!


Contos deste Ano #3

Por mares nunca antes cheirados

Felisberto, primo do Amaral, tinha tudo para dar certo, o problema é que cheirava mal. Bonito como nenhum, bem-falante e aprumado. Mesmo na farda de comandante, nunca odorava a lavado. Sabia triste a sina de seu cheiro e esfregava o desespero sabido. Nunca era de filas primeiro, pois se vento vinha, o detrás estava caído.

Se a comandar era o mais esperto, sabiam seus homens de antemão, que ao pé do Comandante Felisberto só se chegava o Sargento Carlão. Este por ser duro de nariz e mal feito de olfacto, era o único no seu cariz que chegava perto, de facto.

Lágrimas de Comandante corriam, no ombro do primo Amaral, que a muito custo lhe dizia para não pensar no cheiro, e tal. Forjavam uma solução galante para este mal de odor marinheiro, pois se a questão não era valor para que seria então o dinheiro?! Vai de comprar cremes e sabões, loções e coisas médicas. O combate ao mal odorífero seria travado em batalhas épicas.

Mergulhado em banheira de perfumes, assim ficou o infeliz odorado. Dois dias inteiros mergulhou até estar bem fresco e lavado. Dormiu e tudo mais ali, naquela sopa de belas fragâncias. Deixou ir o mundo, que antes lhe estava parado, enquanto perfumava o mais recôndito das suas ânsias. Nascera o marinheiro perfumado.

O seu andar espalhava agora flores de Primavera, enquanto o seu falar exalava brisas e tons de aloé vera. Até o mar dos seus olhos cheirava a poesia conquistada, num perfume de outros molhos e ramos e tudo o mais que bem cheirava.

Nova página de conquista em cheiro de história de artista, pois era vê-lo a abrir sorrisos e a rodear-se de todos no navio. Já se fazia ao mar de peito aberto e do antigo ninguém mais viu, pois nascera para todos o recém cheirado Almirante Feliz Berto!


Doenças e outras crenças

O pior nem é a febre que me queima.
O pior nem é a tosse que me arranha.
O pior nem é o muco nos canais.
O pior nem é cabeça que me explode.
O pior nem é a dor de abrir os olhos.
O pior nem é a sensação de ter sido atropelado por um camião.

O pior... é querer ler e escrever e não conseguir por causa de tudo o que não é pior.


Transferência de Energia (Exercício)

CONDICIONANTES:

Regras: Através da sensação de uma experiência, descrever outro acontecimento.
Experiência: Durante um mergulho a perna fica presa numa rede de pesca. Falta de ar.
Acontecimento: Estar preso (num estabelecimento prisional).


O PROPRIAMENTE DITO:

O ar ia acabar. Ainda faltavam vinte anos de pena e o ar não ia chegar. Queria respirar e não sabia como, pois sentia o aperto do tempo nos meus pulmões. O ar daquela cela tinha que durar mais vinte anos e, por isso, tentava respirar pouco de cada vez. Os 10 minutos de ar livre por dia, não me chegavam para encher os tanques da alma. Estava seco.

No entanto, estava molhado na clausura como se de um aquário se tratasse. Duas vezes por dia deitavam comida na minha água. Eu mal conseguia alcança-la, pois sentia as pernas presas nas redes da lei. Essa mesma lei injusta que me mantinha ali fechado e com pouco ar. Agora sei porque os peixes de aquário abrem e fecham tanto a boca – não conseguem respirar.

Vinte longos e asmáticos anos e eu com as pernas presas. De vez em quando o meu advogado olhava-me do lado de lá das grades e só faltava bater no vidro para ver se eu me mexia.

Lá vem a comida… não consigo… tenho as pernas presas e pouco ar. Enrodilhado nesta cama, neste cárcere sinto a chama molhada. A minha boca abre e fecha e eu sei que há mundo lá fora.

Vinte anos e nem fui eu que a matei!


Contos deste Ano #2

A Revolta do Avental

Leopoldina, não do Continente, era filha de gente fina e mãe de boa gente. Vagueava pelas ruas da vida, com uma alma mais curta que comprida. Dona de uma casa de alguém, varria os despojos do dia sem obrigados e só com desdém. Três filhos de geração contente, eram a alegria dos seus olhos e a razão do caminho em frente.

Nascida de berço dourado, casara com a tristeza da vida e estava o destino estragado. Largara direito de profissão, para entortar pela lide doméstica. Um, dois, três e já não teve mão, filhos e atilhos apagaram a luz da última réstia. Fazia dos dias acinzentar e guardara pincéis de esperança, pintara uma cruz no olhar e fechara o estore do amanhã criança.


Nalgum dia de visão certeira, sentira na alma um sopro dos deuses que lhe abriu a porta da escandaleira. Agarrou malas de decisão e partiu convicta sem credo na mão. Deixou para trás todo aquele que andava, na alçada de um pasmado patriarca. Levou apenas o que ainda mamava para não lhe deixar uma tão grande marca.

Voltou muitos anos depois, dona de uma vida de aventura. O que mamava já só via mamas, ainda era pendura mas já guiava bacanas. Trazia outra luz no olhar e agarrara o cinzento de frente. Enquanto os ficados continuavam a ficar, ela trazia dança em corpo mais quente.

Fizera mundos e trouxera fundos em alargadas prosas financeiras. Plantara cores e enterrara dores, deixando florir abetos e outras rameiras.

Trouxe ventos de mudança, que foram acatados na ordem do dia. A que foi já não volta nem lança, a que está é porque já foi e agora nem ia. Assim se fez nova ordem, em casa de mulher de ideias que comeu onde os outros mordem, lambeu feridas e coseu meias. Percebidas contendas as de Leopoldina, moralizam nesta história de sucesso. Pois matriarca que nasce fina, jamais será concerto de pouco ingresso.

Vera incessu patuit dea*




* Manifestou-se verdadeira deusa pelo andar.

FRASEANDO #6

Alguns casamentos acabam bem, outros duram toda a vida.

Woody Allen


(Allan Stewart Königsberg - a.k.a. Woody Allen)


The Sound of Words - IX

Fui ao jardim da Celeste,
giroflé, giroflá,
bruto!
Fui ao jardim da Celeste,
giroflé, flé, flá,
gentil...


Contos deste Ano #1

História de um outro Inácio

Inácio, também por rima Pancrácio, dava ares de galináceo nas suas feições de esperança. Dono de altiva ingenuidade era na verdade, um adulto em recheio de criança. Nascera fino de grossura, mas fazia da sua postura, a crença da sua faiança, pese embora a pouca bonança. Ah! Ainda fazia da envergadura, a crise de uma verga dura numa apatia sem ponta, onde o que interessa é a altura e não o tamanho da conta.

Vivia então assim, na ilusão do rico pobre, que pensa sempre chegar ao fim, mas nem todos os meses sabe se cobre. Escrevia coluna social, que dava para os gostos e gastos. Não escrevia nem bem nem mal, mas fazia da opinião, afinal, a leitura de seguidores vastos.

Frequentava altas patentes em festas e ocasiões destas, mas cerrava sempre os dentes pelo esforço dos gastos latentes, florido de apertos e economias funestas. Mas eram ossos do ofício e tinha de picar ponto em presença, cobria de esforço o sacrifício e lá golpeava os ilustres com estocadas da sua crença.




Certo dia, agora exposto, estava o autor na amargura de não ter sumo na fruta nem matéria-prima desde Agosto. No jornal a coluna parada, fazia da escrita de Inácio, sempre com muito opiáceo, a sequela da história inventada. Precisava da luz a visão e na falta de abanão social, fez-se afoito à aventura da estrada e ao destino deitou mão. Deu-se mal.

Meteu foice em seara importante e galgou saias de esposa fina, conseguiu história em semana gritante, mas acabou depois diletante de uma tal de Madame Lina. Ficou da lembrança o mais giro e acabou mal tinha começado, pois marido resolveu questão a tiro e se esta página mais não viro é porque se finou o autor trespassado.

Termina assim coluna social, de um Inácio à procura de seiva. Incompetente no coiso e tal, escrevia nem bem nem mal pois nascera em berço de eiva. Moral da história pedante: não se procura destino forçado, mas espera-se acontecimento traçado em desígnios de acaso ofertante.

CLUBE DE LEITURA – Iniciar o ano a solo

As Trilogias afundadas, ainda comentáveis de opinião escassa, trazem à tona da próxima escolha a vontade soberana dos leitores, dos votantes e dos votantes-leitores. Festividades passadas fazem da leitura saudável a necessidade próxima das calorias indesejadas. Olhos comandam, bocas descansam.

“Um livro sobre coragem e humanidade. Uma prosa elegante, recheada de humor e honestidade, Lopez conta-nos uma história de amizade e esperança.” – Publishers Weekly

“Lopez é um fascinante contador de histórias que nos dá um sentido testemunho sobre uma amizade improvável, música, esquizofrenia e dignidade. O resultado é uma surpreendente leitura a que não conseguimos parar de ler.” – The Washington Post




O Solista de Steve Lopez vai acompanhar as próximas duas semanas do Clube, numa partitura solitária para várias partilhas. Segunda-feira, 19 de Janeiro, será lançada a pauta de partida. À chegada tocam-se as notas de cada um em mais um concerto literário.

Bons solos!

Este ano... estarei a dormir!

Ano de escritas decisões
Fará do sentido esperança
Crescerá do amanhã criança
Será descarga de outros iões
Em palavras de mais bonança

E quando a manhã acordar, estarei a domir


Ano de ventos literários
Aponta no caminho certo
Faz do longe o mais perto
Mostra dos sonhos operários
O trabalho de fecho aberto

E quando a tarde se levantar, estarei a dormir


Ano de pensadas palavras
Ilumina falsas questões
Abraça causadas visões
Poetiza memórias livradas
Em sonetos e tais canções

E quando a noite se deitar, estarei a dormir

... para poder acordar!


FRASEANDO #5

Não tenho nada a declarar, excepto o meu génio.

Oscar Wilde


(Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde)