Já só conseguia ter um olho aberto e mesmo esse só dava imagens desfocadas. Entre a neblina da indecisão parecia-me ver tudo castanho-brilhante. Algumas indagações mentais mais tarde, percebi que tinha a cabeça sobre o balcão. Estava de volta ao bar. Decidido a combater a inércia abri o outro olho.
Agora via tudo em amarelo-torrado com oscilações. Estava a ver através do copo de uísque. Numa tristeza sorridente pensei que não deveria ser possível descer mais baixo na escala da humilhação (ainda bem que estava encostado ao balcão!) e chamei a mim todos os sentidos necessários à operação levantar de cabeça: equilíbrio, orientação, força e força de vontade. Cinco minutos depois a operação revestia-se de sucesso. Embora um bocadinho oscilante, a cabeça encontrava-se na verticalidade possível.
Sobre o balcão estavam sete copos cuidadosamente alinhados. Em comum tinham o facto de estarem vazios. O oitavo, o que ainda tinha líquido, estava mais próximo de mim por dois motivos: primeiro era o único que estava ao alcance da mão sem ter que esticar o braço, segundo eu já tinha olhado através dele e por isso conhecia o seu interior como ninguém.
Entretido com os meus pensamentos tão pouco sóbrios nem reparei nos acontecimentos seguintes.
Traste 2
Desapertei o botão. A porcaria da gravata que não servira para nada, já me começava a apertar os nervos. Decidi soltá-los. Que bons estes amendoins. – Dê-me outra tacinha, por favor.
Um gole pequenino que isto tem que durar. Venho a este bar todos os dias, bebo um uísque com dois dedos de água e uma pedrinha de gelo todos os dias (com muitos amendoins!), sento-me no mesmo banco todos os dias, encosto-me ao balcão todos os dias. Todos os dias trago um fato diferente, todos os dias venho de uma entrevista diferente. Que merda de rotina. Continuo desempregado! – Outra tacinha, por favor. – São mesmo bons.
Cada carta da (in)segurança social aumenta-me as pulsações do desespero e a sede! Não fosse a minha escassa liquidez e o líquido aumentava. Aqui devem pensar que sou forreta. Se eles soubessem que não tenho mais… mas os amendoins são mesmo, mesmo bons.
- Outra tacinha, por favor.
Traste 3
Nem o decote me valeu, aposto que o editor é gay. Já revi o romance três vezes e mesmo assim ele diz que ainda não está bem. É sempre a mesma conversa de que eu tinha prometido tanto com o meu conto das Bicicletas 5 e que era uma romancista nata e blá, blá, blá…
- Um uísque com Água Castelo, por favor.
Que estúpido! O que é que ele percebe de romances?! Eu merecia publicar e ainda não consegui mais que um conto neste livro: Bicicletas para Memórias & Invenções 5 - Colectânea de contos dos alunos da Companhia do Eu. No entanto, anda sempre comigo. Não consigo é abri-lo mais. Fica pousado sobre o balcão.
- Um uísque com Água Castelo, por favor.
O gordo já está outra vez a deixar cair a cabeça e o desengravatado não deve ter conseguido arranjar emprego ainda. Que nojo! Já não posso ver as mesmas caras todos os dias. Na verdade, não sei o que venho aqui fazer todos os dias.
- Um…
- … uísque com Água Castelo?
- Obrigada.
Cão 4
Fechei a porta com o estrondo habitual de quem foge da chuva. Sacudi a gabardine, pendurei-a. Sacudi o chapéu, deixei-o no cesto. Lá dentro o tom castanho-fumo escondia os bêbados do costume: o meu outro Eu já deixava cair a cabeça no balcão. Tinha sido o primeiro a chegar e era pela linha temporal o mais bêbado.
O Personagem 1 que devia ter chegado pouco depois, mastigava os amendoins com a boca toda. Como era a única coisa que não se pagava, era o que repetia mais vezes. O uísque devia ser o primeiro, a julgar pela habitual característica forreta. Cada dia um fato diferente e a esta hora sempre com a gravata desapertada de frustração. Não se desse o caso de ser meu irmão e nem sequer me preocupava em dirigir-lhe o olhar. Cumprimentei-o com a indiferença que pautou toda a nossa vida.
Ao seu lado, a Personagem 2, terceira da ordem de chegada trazia o seu livro do costume: Bicicletas 5. Nunca o lia, mas adorava usá-lo como base para o copo. Já era a terceira vez que eu lhe recusava o romance, mas a verdade é que a gaja não escreve nada e não percebe que só a recebo por causa dos decotes. Não sei porque é que ela insiste em frequentar o mesmo bar que eu. Deve ser para me fulminar com aquele olhar de fundo de balcão, via uísque com água castelo.
Aproximei-me do meu outro Eu, o que me era mais familiar pelo narciso entendimento, e perguntei-lhe o que é que eu ia beber.
- Um uísque duplo sem gelo. – Respondeu ele virado para o barman em tom de pedido e antes de voltar a deixar cair a cabeça.
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