O Tempo

Perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. E o tempo respondeu ao tempo que eu não tenho tempo nem para escrever, nem para falar a ninguém.

Falta-me em tempo o que me sobra em vontade.


Um amor permanente

Dona Caneta Perneta e Dom Papel Fiel, amantes de todo o sempre, encontravam-se em tardes de luxúria escrita sempre que as imposições de autor os juntavam.

A Dona Caneta, sempre fogosa, saltava-lhe a tampa de contentamento quando avistava o seu bem amado. Despida da cintura para cima deslizava a sua roliça vontade nos imaculados braços do seu amante. Atrás de si um rasto de marcadas palavras, deixava testemunhado no tempo a paixão gráfica que os unia.

Dom Papel, aparentemente passivo, fazia da sua grandiosidade e possibilidade de tudo permitir, o leito da terna tranquilidade. A fertilidade da sua orientação guiava a sua amada na direcção do florir intentos de criação.




Os seus libertinos encontros tornavam inspiradas as mais infelizes linhas de pensamento escrito, debruando a ouro literário as capas de intenção. Do amor destes Dons, nasceram contos e romances, ensaios e outros catraios, em palavras de amor permanente. Desde que a tinta tem pinta e que o papel sabe a mel, esta relação tem sido verdadeira e conhecida. Se há amor universal e fiel, é este que une Dona Caneta e Dom Papel.

A história das palavras e da arte de deixar escrito, assenta a sua herança e as suas raízes, neste singelo destino de dois amantes que nasceram para se encontrarem e deixarem marcados nas linhas do tempo os traços da sua paixão.

A eles, ergo a minha taça de orgulho escrito e concretizo o seu amor pela minha mão de escrevedor.

Dia Mundial do Livro e dos direitos de autor


Estou cansado da distância imposta pela circunstância. Quero ter mais tempo para eles e não consigo. Um ano passou desde o último apontamento sobre a comemoração de hoje e desse dia para cá bastantes livros foram lidos. Perdão. Bastantes não, porque nunca bastam. Muitos. Muitos também não porque me sabem sempre a pouco. Talvez alguns. Isso mesmo. Neste ano que passou li alguns livros.

Tentei também contribuir para a descida de alguns lugares nestes rankings miseráveis em que teimamos permanecer na linha da frente. O Clube de Leitura, na sua muito modesta dimensão, é um veículo de combate a estas realidades. Se a influência de ler um livro for passada a uma pessoa que seja, o resultado é sempre positivo e a vitória é um virar de página.



Mas não chega… sinto que não chega. Aconselhar, incentivar e sugerir não são garantes de mais leitura. Penso na escuridão em que vivem os que não descobrem este prazer. Na verdade, são vítimas do desconhecido e não sabem o que estão a perder simplesmente porque nunca experimentaram. E se fosse possível formar as pessoas em prazer de leitura?! Ensinar a encarar os livros como os objectos mágicos que são.

Neste dia que é deles (dos livros) e dos seus autores, penso nestas possibilidades de partilha. Haverá alguém interessado em querer aprender o prazer da leitura? O prazer (seja ele qual for) também se aprende e como tal também se ensina.

Da minha parte, ofereço-me para ajudar a ensinar. Algum voluntário se senta neste desafio?



CLUBE DE LEITURA – Sinfonia em Branco

O trabalho e a intoxicação alimentar, não me deixaram chegar perto. A rastejar pela fresta da janela de oportunidade que se abriu momentaneamente, passo apenas para constatar o já constatado na votação.



Nas próximas semanas, e segundo a vontade expressa dos membros com 55% dos votos, dedicaremos as nossas leituras Clubísticas à Sinfonia em Branco da Adriana Lisboa. Este livro que ganhou o Prémio Saramago foi amavelmente sugerido e isso é sempre motivo de orgulho e de realce. Realçado.

Como de costume, será lançada a discussão para que surjam das vossas palavras as cores que ajudarão a pintar esta sinfonia.

Farmácia da Partilha

A vida de bairro (no meu bairro) continua a deliciar a minha atenção cada vez que uma necessidade me incute na direcção de qualquer estabelecimento ou serviço. Depois das magníficas partilhas do Café, as vicissitudes adoecidas lá de casa impeliram-me na direcção da farmácia. A espera na fila tratou do resto.

Desta vez as situações oscilaram entre o habitual riso e o choque brutal de outras realidades existentes em tanto lado e que facilmente se escondem no lado do esquecimento por não lidar com elas em base diária.



Duas situações. Na primeira duas beldades desdentadas que entraram depois de mim, tipo avental e chinelos, dirigem os seus ruidosos cumprimentos a um miúdo de braço ao peito (engessado até ao ombro) que estava com o Avô (que não conseguia assinar o papel da comparticipação dos medicamentos) no balcão, a serem atendidos. Na segunda situação, entra uma terceira beldade (igualmente desdentada, sem avental mas com chinelos) e com um espaço ocupacional aí de uns 4m2 e que perante a fila de pessoas pede uma favor às duas primeiras beldades enquanto vai tratar de outros “afazeres”.

Seguem os diálogos, 100% naturais sem qualquer adição de corantes linguísticos ou conservantes de autor.


Primeira situação:

Beldade 1: Oh gajo! Oh Sílvio! Qué isso?
Miúdo: É o meu Avô.
Beldade 1: Não pá! No braço!
Miúdo: Ah… foi o meu Pai…
Beldade 1: Estes miúdos portam-se mal e despois levam porrada!
Beldade 2: Porra! Os meus levam porrada, mas também não é preciso partir o braço!
Beldade 1: Oh… o Pai anda sempre bêbado!


Segunda situação:

Beldade 3: Fogo! Tanta gente!
Beldade 2: Oh filha… eu também tou aqui e tenho o almoço a fazer!
Beldade 3: Vocês são as últimas?
Beldades 1 e 2 (em coro): Samos!
Beldade 3: Olha, então se chegar à minha vez dizes à doutora que eu quero Clanax (foi o que eu percebi…) que eu vou ali encomendar frango e venho já…
Beldade 1: Sim… Clanax… vai lá ca gente pede… dá cá a receita e o dinheiro que despois dou-te a demasia...
Beldade 3: Brigadinho…

Desastres de convicção

O pensar de cada um colide nas protecções frontais do pensar de cada outro. O choque de feitios provoca mortos na estrada e feridos nas quadras festivas. Na hora de contabilizar perdas, lambem-se feridas de orgulho.



Seguia o veículo A carregado de folares de bandeira branca e ovos de um chocolate amargo de tanto tentar, no sentido S-N (Sacrifício – Naupático). O veículo B, em sentido contrário, transportava embrulhos de natal passado com laços de frete vermelho. Cada um ostentava as suas cores e defendia a sua bandeira com o orgulho da casa que defendiam. Rolavam estrada fora em pose de duelo medieval, empunhando cada um a sua lança de convicção na certeza de derrubar qualquer cavaleiro de convicções opostas que se cruzasse no seu caminho.

Estavam preparados para tudo e para se cruzarem com qualquer um, excepto para se cruzarem um com o outro. Como em qualquer história em que se pretende provar algum ponto de vista a inevitabilidade do encontro adivinhava-se. Seguiam as duas embaixadas inchadas de razão e a passo de confiança, sem saber que na curva seguinte, esquerda para quem subia direita para os inversos, se daria o fatídico choque de titãs.

A e B tinham já contacto visual. Enquanto uma mão se crispa no volante e o pé carrega desenfreado no acelerador, a outra abraça com força redobrada a lança da convicção própria. Dá-se (a quem quiser) o choque. Estrondo ensurdecedor. Seguido de silêncio sepulcral. As populações de admiração local acercam-se dos acidentados, enquanto esperam as autoridades do ajuizamento. A sensação geral é de uma atónita loucura. O que será que queriam provar?



Nos escombros misturava-se o cheiro doce dos chocolates e folares, pintalgado de embrulhos e laços, com o agre da morte certa. As lanças partidas jaziam ao lado das respectivas quadras festivas, enquanto o sangue da estupidez humana escorria dos peitos abertos de orgulho em golfadas de arrependimento.

Para a história ficou o engrossar trágico das estatísticas de acidentes familiares, dos mal-entendidos e das relações mortas. Perderam-se, para sempre, as convicções pessoais e a certeza egoisticamente individual da posse da verdade e da razão. Como em qualquer morte, a certeza que ficou foi a de que aquele encontro não voltará a respirar nunca.

Ena! Obrigadinho…

Incons(ciente) que o resultado poderia ser este, enviei algumas singelas contribuições para que escolhessem o menos mau. Afinal usaram todos o que muito apraz a modéstia da minha autoria, embora possa não parecer pelo antagonismo da primeira frase. No entanto, um bom texto deve começar com uma frase forte (mais modéstia, portanto).



A Escrita Criativa continua a ser uma paixão e em boa hora foi lançado este espaço de divulgação para quem quiser conhecer e saber mais sobre os cursos. Uma maneira de (re)descobrir muito do que somos e não sabemos, aprendendo a brincar com a imaginação através de algumas ferramentas.

Escrever é uma experiência de vida, que deve ser vivida pelo prazer da procura e da partilha. A matéria-prima é intrínseca a cada um, só é preciso aprender a moldar as palavras. Tentem...

Sons Israelitas

Muito bom! São as duas palavras que me ocorrem acompanhadas da devida exclamação. Os The Voca People são de Israel, embora se digam originários do planeta Voca, e cantam e representam desta maneira brutal. Como adepto confesso de música vocal (a cappella) já tenho ouvisto (de ouvir e ver) muito grupos e muitos estilos diferentes. Destes, gosto muito. Obrigado pelo envio e aqui fica a mais que merecida divulgação. Desfrutem…


Lisboa – Faro em 7 Salsas

Em aproveitamento de episódios passados e da proximidade de uma passagem de nível, sem comboios mas de dança, o desafio foi lançado e logo aceite. Todas as áreas de serviço no caminho serviriam para dançar uma salsa. A título de curiosidade, entre Lisboa e Faro existem 6 áreas de serviço e por isso a última já foi no destino propriamente dito.



Com uma média de uma salsa a cada 40 km, a viagem demora o dobro, embora não se dê por isso. O tempo não era questão, apenas o bom tempo e a vontade participaram no projecto. Concretizou-se, e teve um salsa-itinerário mais ou menos assim:

1ª Área de Serviço de Alcochete – Mi tierra - Gloria Estefan
2ª Área de Serviço de Alcácer do Sal – Tus Ojos - Gloria Estefan
3ª Área de Serviço de Grândola – Salsa Salsa – Yuri Buenaventura
4ª Área de Serviço de Aljustrel – Michaela - Sonora Carruseles
5ª Área de Serviço de Almodôvar – Mi Mulata – Frankie Negron
6ª Área de Serviço de Olhão – Amor Verdadero – Afro-Cuban All Stars
7ª Parque do Teatro Municipal de Faro – ¡Sí Señor!... - Gloria Estefan

Nesta operação Páscoa registaram-se 6 áreas de serviço e 1 parque de estacionamento, 7 salsas, 260 km e 4 horas e meia. Um saldo bem mais positivo que em igual período do ano passado.


FRASEANDO #20

Podrán cortar todas las flores, pero nunca terminarán con la primavera.

Che Guevara



Ernesto Guevara de la Serna
(1928-1967)

Maratona CHE

Na senda das vantagens do Cartão Mágico, houve Che Guevara em dose dupla. Quatro horas e meia em 2 filmes, com vinte minutos de intervalo para respirar fundo, deglutir qualquer coisa que nem me lembro e aliviar o que fosse necessário.

Uma visão que não é de todo imparcial, mas que mostra em parte factos históricos inegáveis e como o destino que cada um dá à sua vida e ao que acredita, pode ser tão diferente e marcante de pessoa para pessoa. Bons filmes, dão que pensar e aguçam (para quem não conhece bem) a vontade de conhecer a vida deste homem: Ernesto Guevara de la Serna, mais conhecido por Che Guevara ou El Che. A não perder.










CLUBE DE LEITURA – O Senhor que se segue?

Movimentações decisivas surgem no horizonte do Clube. Aproveitando duas sugestões gentilmente enviadas, damos aqui início a mais uma panóplia de escolhas para o livro seguinte. Aqui vão ficar três hipóteses que se juntarão, ou não, consoante as vossas contribuições, a outras mais nos próximos dias, para serem sujeitas a votação.



1 – A Educação Sentimental – Gustave Flaubert




2 – Sinfonia em Branco – Adriana Lisboa





3 – o remorso de baltazar serapião – valter hugo mãe



O regresso de um personagem – II

Introdução – Exercício de utilização do mesmo personagem em diversas circunstâncias e condicionantes. Segundo exemplo, 15 minutos. Tem que começar num lugar alto a observar algo e tem cinco interrupções a inserir obrigatoriamente: “tenho saudades do tempo”, “será que perdi o meus dias ou os meus dias perderam-me”, “é mais azul quando dói”, “mas não, isso não”, “as coisas que voltam não voltam”


Acção:

Warajad Sterck Rashid estava na varanda da sua penthouse a fotografar as pessoas que se vestiam na pressa matinal. Incrível a quantidade de pessoas que o fazem de cortinados abertos e que confiam na descrição das alturas, esquecendo-se que há sempre alguém mais alto. Curiosas, também, as diferenças de janela para janela; nalgumas vêem-se corpos que se lamentam terem que ser tapados e noutras felizmente que o fazem.

Tenho saudades do tempo em que percorria, todo nu, os campos atrás da casa. A leveza de correr sem roupa, deixava fresca a erva do meu crescimento.



Deve ser por isso que gosto de corpos nus. Sobretudo os dos outros e especialmente os que ainda não conheço. Não há mistério melhor que desvendar o que se esconde por trás de cada peça de roupa. As belezas gritantes, os choques constantes, os desgostos de fartura e qualquer inesquecível escultura, aumentam-me a procura.

Será que perdi os meus dias ou os meus dias perderam-me nesta busca pelo corpo? Talvez tenha deixado lá na aldeia, o espaço que devia dar a cada um. Mas não o faço por mal, observo porque aprecio. A liberdade conturbada da minha infância é mais azul quando dói a razão. Nos dias em que me passa a dor, sinto-a verde e inocente e aí sim tudo parece no lugar certo.

Para ir à cidade obrigavam-me a vestir, mas não, isso não: antes ficar nu por aqui que vestido por lá. Costumava pensar. Como tudo mudou, agora adoro estar vestido a sentir a segurança da envolvência. As coisas que voltam não voltam a despir-se mais. Já não consigo correr nu, talvez a gravidade tenha a sua influência na mudança de gosto. Que desgosto…

O regresso de um personagem – I

Introdução – Exercícios de utilização do mesmo personagem em diversas circunstâncias e condicionantes. Primeiro exemplo, 10 minutos. Tem que falar dos pais, de sítios onde viveu, do acontecimento mais importante da sua vida, da actividade principal e onde vive agora.


Acção:

Warajad Sterck Rashid era filho de dois pais. Homens. Nunca soube quem era a sua mãe biológica, mas também nunca sentiu muito essa falta pois um dos seus pais cumpria bem o papel de mãe. Viveu grande parte da sua vida numa aldeia do Norte da Índia, porque a sua peculiar família não era bem aceite na cidade. Entre outras coisas, aprendeu a ler e a escrever em casa. Os seus pais eram, respectivamente, um fotógrafo (o pai-pai) e um escritor (o pai-mãe).



A aldeia onde vivia só tinha população velha e provavelmente a maior parte deles nem conseguiam ver ou ouvir bem a sua família. O acontecimento mais marcante da sua vida, deu-se precisamente com a mudança de um jovem casal e da sua filha, lá para a aldeia. O impregnado ar feminino que passou a respirar mudou-lhe mais que a sensibilidade nasal.

O mundo que conhecia foi-se transformando aos poucos, ao ponto de aos 20 anos abandonar a aldeia para ir viver para a cidade. Queria ser realizador. O facto de sofrer de crise de identidade ajudava muito na criação de personagens para os seus filmes. Adorava viver cada uma delas, e confundia na sua cabeça a nitidez da ténue linha entre o que era ele e o que era cada personagem. Por isso se especializou em filmes sobre sonhos que nunca contam a verdade.

Actualmente vive numa penthouse de um enorme prédio na cidade. Sempre que não está em filmagens sai para a rua com o seu inseparável fotómetro e a sua velha Polaroid, em busca do filme seguinte.

Duplicidade Diferente

Os ingredientes estão lá todos, mas talvez o sabor final não seja o que se espera à partida. Temos bons e conhecidos actores, espionagem e romance, emoção e um enredo bem estruturado. Portanto, tudo aquilo que é preciso para fazer apenas mais um filme igual a tantos outros.

Só que este filme não se fica só por isso e consegue juntar a esses ingredientes garantidos alguns temperos que fazem toda a diferença no degustar. Como a sequência original com que a história é contada e o final talvez não tão previsível como pode parecer.

Um bom exemplo de que um Cartão Mágico serve para estes entretenimentos que de outra maneira poderiam saber a dinheiro mal gasto. Divertido e ajuda a distrair.


CLUBE DE LEITURA – O Leitor

Semanas passadas da decisão, os leitores de O Leitor chegam ao fim da travessia. Os goles de sabedoria de cada um são bem vindos nesta sede de partilha. O calor que já se faz sentir não seca as gargantas da opinião.




Muito mais que uma história de ficção, este livro atravessa um período de grande realidade. Uma realidade mundial, mas muito alemã de sentir e viver. Um livro apenas sobre analfabetismo, ou uma crítica social a determinada época? Uma história de amor ou de ódio? Vidas que se cruzam e se marcam para sempre.

Muito se pode interpretar e opinar neste livro. Façam vossas as palavras de opinião e não deixem passar por vós o sangue do sentimento em veia de indiferença. Dar sangue é uma dever de todos, por isso doem as vossas impressões, opiniões, vontades e outras verdades.

P.S. - E livros... sugestões... participem na escolha do próximo para não serem sempre imposições de que se gostam ou não.

Contos deste ano #6

O pio da pia

António da Silva Albano, de todos o mais bacano, era senhor de alta voz em porte de siglas ASA. Não pilotava de ganha-pão, mas cantava noite fora pela mão em recantos de auditório e casa. Soprava notas de timbre certo, sempre de peito aberto em fulgor de paixão cantante. Não há espectador que não se levante, e de palmas não seja exuberante sempre que o Albano, a seu jeito, cante.

Assim vivia por notas e harpejos de voz, sempre em constante cantoria. Quem o visse em franzino colo de avós, jamais lhe almejaria futuro, quem diria?! Cantava para emigrantes, senhores e outros doutores, especialistas e pedintes, alguns também pedantes, surdos e outros mudos, mas todos seus ouvintes. Festas e cerimónias, restaurantes, bares e outros lugares, alguns discos e radiofonia também constavam das suas parcimónias.

Tudo cantava sobre rodas até ao dia em que nem mais um pio. Albano abriu a consola, vergou olhos e rodopiou a mola, mas som ninguém ouviu. Excepção a uma pequena nota não musical, que do esforço saiu de mansinho e odorou mais para o lado do mal. Também mal, disse da vida má sorte, em desespero de som algum que parecia dentro de si como que fechado em caixa forte. Vieram médicos e especialistas, damas de santo e engenheiros, padres e outros curandeiros, mas ninguém o punha a cantar. Azar!



Chorava em silêncio mundano, Albano já menos bacano, pela desgraça da sina sua. Por companhia e inspiração de raça ofereceram-lhe então uma catatua. Bem se esforçava o pobre animal, por devolver a voz a seu dono, mas apagado que andava afinal, nem dormia nas horas de sono. António da Silva Albano, caía no mais fundo do desespero humano.

Esperava milagre sem força, sentado na espera do dia em cadeira tom de agonia. Até que desmaiou de desalento, caiu sem contentamento e bateu com a cabeça na pia. Pois se do piar tinha sido o mal, assim como foi também agora voltou. Albano a cantar acordou uma espécie de hino nacional.

Voltou a alegria a casa de música, voltaram as vozes e as palmas em explosão, voltou o esplendor e as cantigas de rua, voltaram os coros e os trinados de mão. Albano, de novo bacano, seguiu cantando a vida em notas de feliz canção. Até hoje não voltou a perder a pio e nunca se soube o porquê da razão.

Moral do desfecho musical: em caso de aflição afónica é cabecear qualquer pia atónita. Serve para outras questões, maleitas, frases feitas e males de índole mais geral.

FRASEANDO #19

Quando eu era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje, tenho certeza.

Oscar Wilde


(Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde)