Saltou pela janela e estranhou o chão tão mole. Cada passada deixava uma marca de passado impresso. Não sabia o que sabia até então, mas estranhava o ambiente de nevoeiro. Sentia que acordava de um sono tão profundo que nem se lembrava de o ter dormido. Não estava frio nem calor. Não estava nada.
A primeira pessoa que viu nem lhe dirigiu o olhar. Estranhou a indiferença da passagem, mas também é verdade que hoje em dia as pessoas nem ligam umas às outras. Enquanto pensava no caminho das relações humanas avistou mais uma pessoa. Desta vez dirigiu-se com mais convicção e arriscou um sonoro cumprimento:
- Bom dia!
Nem um vislumbre de movimento de olhar na sua direcção. Como pedras atiradas, as suas palavras afundaram rapidamente no lago da indiferença. Entrou numa rua cinzenta de comprimento que só tinha montras dos dois lados. Não se via para dentro delas, mas reflectiam-se umas às outras criando uma sensação de infinito. Quando passou na primeira não conseguiu ver o seu reflexo. Estendeu a mão para o vidro, até tocar, mas não tinha imagem de volta. No entanto, o vidro reproduzia a rua toda e o lado oposto. Estaria invisível? Não podia. Conseguia ver as suas mãos, os seus pés. Tocava-se e estava ali.
Continuou em frente na procura e percorreu todas aquelas montras que insistiam em ignorá-lo não lhe devolvendo o reflexo. A rua desembocava num largo de sensações desconhecidas que estava cheio de caras familiares que se deslocavam avidamente de um lado para o outro no topo de corpos desconcertados. Tentou falar com todos ao mesmo tempo, mas ninguém o ouvia. Atravessavam o seu corpo como se ele não estivesse lá, como se não existisse, como se estivesse preso entre mundos.
Aninhou-se num vão de escada escuro e bafiento. Um cobertor velho serviu para tapar todas as perguntas a que não conseguia responder. Adormeceu no cansaço e na dúvida eterna.
- E aquele ali?
- Aquele… deixa cá ver… aquele… aquele não devia estar aqui! Quem é que o chamou antes de tempo?!
- Isso não sei, chefe! Eu limitei-me a entregar a ficha dele na central.
- Mas como é que essa ficha veio cá parar 40 anos antes da data prevista? Alguém me explica?! Cambada de incompetentes! E agora?!
- Não sei chefe… talvez devolver o tempo dele a alguém da família…
- Seu estúpido! Seu incompetente! O desgraçado vai cumprir o tempo que falta naquele miserável vão de escada! E para que quer a família o tempo dele?!
- Sinceramente não sei chefe… nunca me tinha acontecido um engano destes… podemos pedir desculpa?
- Cale-se seu incompetente! Não diga mais nada…
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