Compensações

Sexta-feira. Enquanto Lisboa derrete de espanto por não estar ainda preparada para a vaga de calor, o corpo sente-se desfeito do trabalho a mais. A semana foi muito longa, muito extra e muito suada de tudo. Passaram-se todos os horários conhecidos, deu-se a mais onde havia menos e dormiu-se pouco na falta de sono.

Trânsito. No caos costumeiro da perspectiva de um fim-de-semana de sol que se sabe vir aí, as buzinas derretem de impaciência. Uma mota corre satisfeita a caminho de casa, sempre com o sorriso do mesmo pensamento, enquanto os seus 250 kg de ligeireza se vão esgueirando no desespero dos outros. Os 36º que marcavam ajudavam à decisão. Fim do dia e o prémio merecido.



Como alguém dizia: Ele há vidas mais baratas, mas não têm piada nenhuma!

Trabalhus horrendius blogius ausentat


FRASEANDO #23

Partilhar, é olhar para as coisas menos boas e ver nelas a tranquilidade do destino.

Autor Desconhe(u)cido


Brancas Leituras

Era o seu terceiro livro de sempre. Antes daquele só tinha lido outros dois: o primeiro e o segundo.

Decidira ler pela noite fora e as páginas brancas começavam a misturar-se com as pretas, numa confusão de sol que nasce com estore que morre. O livro estava cansado e com sono. As linhas não paravam quietas e os parágrafos insistiam em misturar-se. Os acentos dançavam, as virgulas dormiam e os pontos finais fugiam para os inícios.

Quando a manhã chegou já era de noite. Tinha lido o primeiro, segundo, terceiro, sétimo, quinto e último capítulos. Era uma história sobre adormecidas noites sem sono. Talvez tivesse escolhido mal aquele livro para ler em terceiro lugar. A sua falta de experiência como leitor dificultava a compreensão do texto. Era um livro em branco, como a noite.



Estava a dormir acordado e nem reparara que estava a ler o livro ao contrário. Não de trás para a frente, mas ao contrário no sentido da cabeça para os pés e do vice-versa. O livro indignado cuspiu uma folha para o chão e ele finalmente abriu os olhos.

Cinzenta da Baía um poema de Marilsa Fontes, podia ler-se na folha cuspida. Apanhou-a do chão e assistiu estupefacto a uma revolta de letras em tons de manifestação luso-brasileira: os C`s apareceram de raiva, os SE`s e os ME`s passaram para a frente das palavras, os tons ficaram menos nasalados e a rigidez poética assentou as suas regras. Depois do tumulto passou a ler-se A Baía Cinzenta um poema de Maria da Fonte.

Pouco interessado em manifestações poéticas, rasgou a folha e deitou as lusófonas poesias no caixote de prosa rasgada que estava debaixo da secretária. Endireitou o livro e prosseguiu a leitura. Afinal, era de noite, o sol acabara de nascer e tinha que acabar o seu terceiro livro de sempre.





P.S. - Exercício em que um personagem está a ler um livro. Acrescentar um acontecimento pessoal recente e mexer bem. Levar ao forno em 15 minutos. Revisto.

SATISFAÇÃO

Afinal, já sei de onde ela veio…



Prova superada

09h da manhã. Dois zombies entram numa gráfica com um caixote debaixo do braço. Lá dentro (do caixote), 18 suados, sofridos e conturbados volumes anseiam encadernação. Enquanto os olhos inchados tombam nas pálpebras do cansaço, o orgulho da meta alcançada vai-se alinhando numa mesa à espera de entrar para o forno.

Para trás, ficaram centenas de horas de sofrimento, angústia, desespero, colapsos de índoles várias, noites em branco, cansaço extremo, milhares de páginas, dezenas de (des)formatações, avanços, recuos e outros balanços. Jazem ainda no campo de batalha, um computador exausto, uma impressora extenuada e a deitar fumo, os cadáveres de vários toners, uma verdadeira linha de montagem, muito papel estragado e uma parceria para a vida.



As dores de cabeça, de posição (e imposição), a confusão entre dia e noite, sol que se deita estore que se levanta, mãos que tremem e lágrimas que choram, pairam ainda no ar da vitória, pincelando o agridoce do destino em tons de conquista. Está à vista!

No amanhecer do desígnio, uma enorme e indescritível satisfação emerge das águas turbulentas. Donde virá?!


P.S.- Grande MACina que aguenta tudo e mais alguma coisa. Sem ele a derrota estaria mais próxima.

Poesia de "loja de trabalho"

Eu, calções de crescimento

Acordo longe do mar, perto da
morte.
Sinto uma procura de letras soltas
paradas no tempo da vida.

Sonhos nervosos em lençóis acordados
Fazem dos proibidos momentos, a
abertura das portas da convicção.
Estendo a mão da esperança
e apanho flocos de realidade.
      e de verdade.

A noite dorme e eu não.
O tarde acabou de se misturar
com o cedo.



Factos: Começado num workshop de poesia em plena luz do desconhecido, acabado na escuridão barulhenta de uma impressora às 5h e 32m da manhã.

CLUBE DE LEITURA – Sinfonia (esgotada) em Branco

Por razões de índole editorial, não tem sido possível a muitos membros do Clube (eu e mais um ou dois – isto porque acho que devemos ser uns quatro ao todo) conseguir ler a obra escolhida. Depois de exaustiva e incessante busca em todas as livrarias que conheço e contactos vários para editores e livreiros, consegui, por artes mágicas da insistência, (des)encantar um exemplar no fundo da gaveta da Wook. Já encomendei, mas isto leva o seu tempo, porque vem do Porto (e deve vir a pé).



Sendo assim, e pedindo desde já as mais humildes desculpas pelo atraso, vamos adiar a discussão mais alguns dias. Sei que estamos todos (os quatro) em pulgas para comentar, mas assim até se conseguem aprimorar mais as opiniões.

Boas leituras (com mais ou menos stock) e aguçados votos de comentários refinados.

FRASEANDO #22

Exiguum nobis vitae curriculum natura circumscripsit, immensum gloriae.*

 Marcus Tullius Cicero


Marcus Tullius Cicero

( 106 a.C.  43 a.C.)


*  A natureza restringiu-nos o percurso de vida, mas não impôs limites ao da glória.

Apenas o primeiro

E assim voou mais um ano de crescimento a olhos, pouco, vistos ou não fosse a distância a barreira da circunstância. Mesmo assim, o orgulho é imensurável e o sorriso tranquilo que te acompanha é a prova de que tudo está bem.

Em dia de ajoelhados sacrifícios, peregrino na tua direcção a promessa latente do acompanhamento possível e a garantia do forte sentimento, esse sim, sempre presente. Faço votos de casta idade, para que o futuro nos traga mais tempo visual e mais olhares que se toquem.


Ainda ontem te vi pela primeira vez e custa-me a acreditar, hoje, que o tempo tenha passado por nós com a velocidade estonteante do amanhã. Parabéns pela dádiva de existires e um bom dia para ti, todos os dias, na certeza de que cada um seja pelo menos melhor que o anterior.

Parabéns!


P.S. – E aos pais também, pelo servicinho bem feito.

The Sound of Words - XVII

(conversa entre futuros empresários)

Muhammad: Ali, bute formar uma empresa de pomadas?
Ali: Bute! Daquelas que os pugilistas usam nas feridas.
Muhammad: Podia chamar-se Muhammad Ali!



Texto de segunda ordem

Exercício sobre personagem principal e secundário. Fazer emergir o segundo, descrevendo-o, mais que o primeiro através de um acontecimento. 15 minutos. Ready?! Go!


Manuel Augusto Principal apanhava o mesmo autocarro todas as manhãs. Era o 45 apinhado que ia do Bairro das Lagostas para o Alto de São Gonçalo. Todos os dias era o terceiro da fila na paragem, atrás da mesma velhota de sempre e do mesmo miúdo desaparecido atrás de uma enorme mochila de sempre.

Nessa manhã, esta em que nos encontramos, Manuel Augusto Principal estava na tal fila de sempre atrás dos etcs de sempre, mas por um qualquer desígnio do destino estava 30 cm mais perto da estrada. Foi assim, que o autocarro já atrasado, ainda apinhado e 45 desde sempre, lhe deu uma valente pantufada (ou autocarrada, porque de pantufa não tinha nada) no distraído ombro direito.




O aflito motorista, António José Secundário, precipitou-se porta fora na direcção do Principal, o caído, levantando-o de uma só esperança no desejo de o ver inteiro. Já conduzia naquela carreira há mais de 25 anos e todos os dias parava o autocarro naquela paragem de sempre, mas 25 cm mais longe do passeio. O que pelas minhas contas, e até agora, perfaz uma pantufada (ou a outra…) de 55 cm. Isto vindo de um autocarro tem que se lhe diga, e que se lhe sinta.

António José Secundário, mal dizia a sua quota-parte de centímetros ao lado, enquanto pensava nas consequências daquele acidente: ia ser chamado ao chefe de turno, depois ia ser chamado à direcção, ia ser suspenso 3 dias até se completar o inquérito e quem é que ia alimentar os seus 4 filhos, sobretudo agora que a mulher o deixara?! A sua impecável folha de serviço ia ficar manchada, já não era promovido a Condutores VII, já não seria aumentado em 23€, já não podia levar os miúdos de férias… mas afinal o que lhe teria passado pela cabeça para ter sido pai aos 50? E aos 52… e 54… 55… Ainda por cima, agora, sem ajuda. Tinha que arranjar alguém rapidamente. Estava decidido a por anúncio no jornal se fosse preciso.

Lá em Angola é que a vida era boa. Era um jovem despreocupado, livre de tudo e de nada… talvez fosse do tempo… ou do tempo. Tempo e tempo ajudavam muito em África. Deixara uma promissora carreira de Engenheiro mecânico para ser motorista na metrópole… ah se o arrependimento matasse… era só temporário e já lá vão 25 anos… e agora esta falha…

- Olhe, importa-se?! Eu é que sou o Principal e continuo aqui estendido, inteiro mas ainda estendido!

- Desculpe… distraí-me com pensamentos secundários!

Amanhecer diferente

Ontem a cidade apareceu no meu acordar com cores de novidade. Se uma amiga desapareceu na minha vida, fiel companheira diária dos últimos 2 anos, outra nasceu para mim em todo o esplendor da sua existência.

Fui buscá-la à maternidade ali da Expo, quase como um pai babado, e embrulhei-a cuidadosamente em manta de expectativa. O nervosismo apoderava-se da minha ansiedade e mal podia esperar para pegar na minha menina de 250 kg. Vestida com todo o rigor que a circunstância merecia, olhou para mim e fez o primeiro de muitos sorrisos de companheirismo. Sabíamos de pressentimento que aquele momento era apenas o início de uma longa estrada de aventura.




Fomos passear juntos e mostrei-a com orgulho ao sol e a todos os que passavam. Por onde andámos fomos olhados e cumprimentados. Inchados da nossa parceria, não havia rua com tamanho suficiente para deixar passar a nossa satisfação. Apertados pela circunstância do tempo percorremos o trajecto, sempre curto, de ida já com pena da volta. A recém-nascida brilhava de emoção.

Não querendo ser egoísta na minha alegria, tenho que dividir este acontecimento. É por isso que quem percebe como eu esta paixão por algo que quase parece alguém, merece saborear uma fatia do meu contentamento. Com todos (os que quiserem), partilho o meu bolo de felicidade em palavras e imagens. Bom apetite!





Aconchego de sim

Lágrimas de alegria. Choro lágrimas de alegria pelo conforto sentido em tais abraços. O aquecimento global que me invadiu, fez-me sorrir na escuridão iluminada. Nem sei que dizer quando os que nos amam verdadeiramente se manifestam em ternura escrita.

O meu caminhar desconcertado e bamboleante sempre se pautou por baixos e baixos. O vosso amparo (qual farinha) deu-mo o único alto que preciso. Agora que o subi, desfraldo a bandeira da tranquilidade. De verdade.

Amo-vos muito de igual e diferente modo e sem vocês nem o sentido faria sentido. Obrigado pela constante presença.

Dizer mais, seria enodar a manta que me cobre de sentimentos. Bons momentos!


FRASEANDO #21

Entre as drogas que alteram o pensamento, a melhor é a verdade.

Lily Tomlin



Mary Jean "Lily" Tomlin

Aperto de Não

Sentado na espera do nada, esperei que o destino chegasse diferente. Sabia de cor o salteado do que sempre foi, mas uma esperança sempre se rega. Pode ser que cresça.

Não cresceu.

Esperancei dias de sol entre neblinas e nevoeiros matinais, os tais. Soprei as nuvens da cinzenta razão e provei o algodão doce em deglutir salgado. Abri as janelas do tempo para deixar passar a luz. Pode ser que ilumine.

Não iluminou.

Subi escadas de passado e espreitei portas de futuro com a convicção do presente. Apertei mãos de conveniência e dei palmadinhas nas costas da ilusão. Pode ser que sinta.

Não sentiu.




Levantado na madrugada do ontem, sinto cansaço no corpo de amanhã. Tenho dores nas articulações da alma e não consigo correr no caminho da esperança. Gritei na mensagem do interior. Pode ser que ouça.

Não ouviu.

Revelei cartas de angústia em envelopes de revolta. A letra de tinta permanentemente marcada em papel crivado, escorria sangue de intenção. Pode ser que leia.

Não leu.

Saltei barreiras de silêncio em metros revelados. Comemorei datas de imposição em vitória de consumo sem sentimento ganho. Conquistei (im)posições em maratona desconhecida. Pode ser que saiba.

Não sabia.

Sentado de tanto esperar, nadei nas palavras vividas e mergulhei por baixo dos sentidos. Em dia de linhas oferecidas conjugo verbos de vergonha em textos de ansiedade. Pode ser que escreva.

Já escrevi.